terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Pregador

Ainda era escuro, José João (!?), estava ao espelho do banheiro, arregalando os olhos com os dedos. Estavam horríveis.
Êita Janjão – era como ele chamava a si próprio -, hoje vai ser brabo!
De fato era verdade. A noite foi calorosa nos dois sentidos da palavra – Dona Matilde às vezes caprichava. Mas o pior era o calor, o calor mesmo... (Ufa!) Tinha tomado três banhos depois que chegou da pregação. Pregação?! Sim, isso mesmo caro leitor e leitora, Janjão é pregador...
Meteu os dedos nos cabelos desgrenhados, puxou para trás, conferiu se a calvície havia aumentado, deu umas fungadas... – será que ele vai meter o dedo no nariz? – colocou a mão em concha na torneira e jogou água no rosto. Isso o fazia acordar! Olhou para cima e puxou a lâmpada para perto de si. Janjão já havia providenciado dois ganchos dentro do banheiro, para pendurar a tal da lâmpada e ontem a noite colocou um terceiro, junto ao espelho. Era uma lâmpada nômade, portanto. A desculpa para Dona Matilde, foi que a vista tava piorando. Mas ficou bom, para cultivar o narcisismo, conferir a cabeleira e também para fazer a barba. Agora já ajudava também para escovar os dentes. Nem sequer tinha interruptor. Tinha que dar "umas rodadas" na lâmpada, para acendê-la. A parte de trás do soquete, branco, era isolado com fita-isolante, mas descuidos acontecem. Dona Matilde que o diga.
O tal do espelho, nem mereceria este nome. Um pedaço de vidro do que algum dia já fora espelho. Foi um que quebrou no banheiro da igreja e, como iam jogar fora,... "pidi pro pastor"; quando veio ainda refletia, agora o mofo já o inutilizava por trás... e Janjão tentava desembaçar pela frente.
Meteu a pasta de dente na escova, tirou a ponte de quatro dentes da frente e meteu a escova na bichinha. Depois a equilibrou entre o gancho e os fios da lâmpada. Era para secar. De hoje em diante, aquele gancho também teria essa segunda serventia. Lugar cativo. Só pra não passar em branco, ele sempre fazia aquela gracinha de meter a língua na vaga dos quatro dentes; e fazia aqueles barulhinhos de pessoa abestalhada, só faltava os óculos... que ele usava. Dona Matilde apareceu.
- Vai pra Carioca hoje, Zé João?
- Vou passar primeiro na casa do pastor; mas talvez eu vá pra cidade mesmo.
- Num sei como você agüenta, ficar naquele sol, de gravata. E olha que antigamente tu até usava terno no verão.
- O pior é a garganta seca; às vezes passa um irmão por lá e paga uma água. O que a gente ganha, não dá pra ficar comprando água toda vez que dá sede.
Era de dar dó mesmo. A pregação era uma tarefa de evangelização. Janjão ficava a interpelar pelas brechas do olhar os incautos passantes e, lhes proferia profecias, salmos, apocalipse, e por aí vai... isso remonta os primeiros apóstolos (do Lat. Apostolu), aqueles que foram os primeiros 12 discípulos de Jesus e seus mensageiros imediatos. Logo depois da Ascensão este título foi usado por aqueles que espalhavam a Boa Nova, em geral dirigidos por um dos discípulos. Mas, durante os primeiro anos da Igreja este título foi dado também aos missionários que tinham a tarefa de espalhar a fé e a doutrina de Cristo em certa região ou povo. O Janjão. Um Apóstolo. Região: Largo da Carioca; Povo: povo? Palavra esquisita. O povo era os passantes. Alguns irmãos são contratados para ficar assistindo à pregação. Faz público e aumenta o interesse do "povo" passante.
- Aleluia!
- Aleluia! – Respondia o irmão "contratado".
Vez por outra, Janjão sacava o lenço do bolso já úmido de tanto suor, e passava na testa. Muitas vezes esquecendo de recolocá-lo no bolso, ficava agitando ameaçadoramente o pobre lencinho contra o povo. Dona Matilde sempre que podia dava um pulinho para ver o marido em "atuação". Babava, pois o Janjão se esforçava ao máximo, quando ela aparecia. Mesmo que naquele momento não tivesse nenhum outro ouvinte. Jogava palavras ao ar, verborragia, e Dona Matilde toda contrita. Sol escaldante; pingo do meio-dia. Janjão continuava a jorrar em palavras de salvação; palavras Dele, dita pela boca do pregador; um Apóstolo. E o suor a jorrar pela testa...
Pregar ou Evangelizar (do Lat. evangelizare). Janjão se fazia esta pergunta vez por outra. Pregar é um sermão, sendo Evangelizar preconizar uma idéia ou doutrina; pregar, portanto. Janjão se remoia com estes conceitos; isso maltratava o coitado.
Mas o maltratava mais ainda era a concorrência, por vezes desleal, de alguns outros que tentavam como ele, roubar a atenção de uma miríade inocente; como pode, eles preferirem o som daquele pandeiro e aquelas palavras desconexas? Pois é meu caro Janjão, ainda se chama de arte o repente, essa manifestação nordestina. Muitas vezes se perguntou, se pregando fazendo aqueles arremedos e sacolejando também um pandeiro, atrairia gente para fazer aquela "roda" toda, e, eles ainda "sacudiam" algumas migalhas àqueles verborrágicos. Lembrou que algumas vezes, diante daquele espelho, tentou fazer rima e pregação, e chegou à razão óbvia de que rima e sermão, mais enrola do que convence; são propósitos diferentes. Bem que seria interessante, mas os "ensaios" o fizeram desistir. Não insistiria mais naquilo, mas pelo menos fez dona Matilde se contorcer de rir.
Os ponteiros de seu velho relógio Orient, carcomido pelo sal do suor, se recusavam a encostar-se à 10h, contribuindo para a vertigem causada pela falta de ar, que às vezes provocava a exaltação da pregação. O largo fervilhava, e agora seus alvos aumentavam, sua jugular saltava do pescoço, para a voz ecoar o mais longe possível e fazer-se ouvir; era isso que o deixava rouco. Até se perguntava se o Senhor estava a tirar-lhe a voz!
Pior era presenciar a Guarda Municipal, deitar o cacete no lombo dos camelôs que insistiam em vender "suas vidas", disfarçadas em bugigangas de procedência duvidosa. Não era aquilo aceitável na sua curta razão, fazendo com que a divina inspiração o acometesse de palavras acalentadoras, àqueles que agora o lombo ardia ou se contorciam encostados às grades do Convento de Santo Antônio. Nunca conseguia entender o que faziam aquelas pessoas se arriscarem tanto, para tão pouco, ou tão muito, se se pensar que a vida dependia daquilo, daquele lucro irrisório, que nem existia sequer; apenas lampejos ilusórios da curta permanência de algum dinheiro no bolso, e a certeza de amanhã levar outras bordoadas se insistisse em aparecer no outro dia. Janjão não vendia bugigangas, doava palavras ao vento, sopradas por uma garganta convicta da salvação pela palavra.
Procurava com o olhar os irmãos "contratados" e os achava sentados à sombra, exaustos, não se sabe se por ficar em pé ou por ouvir Janjão. O português que Janjão praticava não merece elogios nem tão pouco repreensão, mas invejava a convicção dada a cada palavra, dom de poucos; e aquela Bíblia que vagava de uma mão à outra, já se desmanchava de tanto ser aberta em capítulos e versículos aleatórios, algumas páginas completamente engelhadas por grandes gotas de suor que para lá se foram, com o firme propósito de as palavras renovarem, na forma de outra Bíblia.
Ah, 12h!
Quantas indecisões impuseram essas horas que indicam o meio-dia! Hora de alvoroço, as formigas saem, destrambelhadas, a procurar comida, causando uma convulsão àqueles que tem algo a mostrar, vender, ou mesmo doar palavras. Mas, terminou por se convencer que somente na volta, será possível fisgá-los, possivelmente, a atenção. Na ida, barriga vazia, na volta satisfação de barriga cheia; também indica o inicio da última batalha do dia. Foi-se ao encontro dos irmãos; um sopro divino baforou-lhe o corpo, na forma de uma brisa suave, que ajudada agora pela sombra, foi como um sopro de vida nova para o Janjão, que se sentou soltando um longo suspiro, de alívio, não se sabe de quê. Especula-se que seja o próprio cansaço, já cansado de cansar o desgraçado.
Janjão não parece entender que o dom salvífico é um livre arbítrio, é a graça de graça, basta decidir e pegá-la; ele já decidiu e tem a salvação, algo que achou por si, sem se dar conta, dado por Ele, que ele não pode distribuir. Salvação tem que se querer.

obs.: minha homenagem a esses incansáveis pregadores de ruas.

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