terça-feira, 21 de outubro de 2008

Enfim a chuva

Oh de casa! – Minha mãe tinha o hábito de deixar a porta da frente da casa aberta, para circular o ar – quente – daquele sertão nordestino. Era um sujeito em tiras. As roupas aos farrapos, pele e osso.

    - Diga aí! Respondeu minha mãe da sala de jantar, e espichou a cabeça para olhar para a porta da frente.

    - Meia-tigela de arroz, pelo amor de Deus! por caridade..., por...

    - Oh Ginú, pega uma tigela de arroz aí... depois traga aqui pro moço! Agüente aí viu!.

Dias difíceis aqueles. Não chovia fazia cinco anos e as únicas coisas verdes que existiam, eram pano de sinuca, óculos ray-ban e papagaio, como se dizia pelas ruas cheias de redemoinhos e poeira acompanhada; um calor de rachar miolos... realmente há cincos anos não caía um “caroço” de água no chão. Pra não dizer que não tinha mais coisas verdes, tinha umas mangueiras que tinham achado um "veiozinho" d'água e ainda estavam verdes; já as mangas, eram minguadas. Houve, nos tempos da secura das árvores dois anos atrás, incêndios causados simplesmente por autocombustão.

Peguei uma tigela, fui na despensa, que sempre tinha cheiro de mofo ou baratas, sinceramente, não sei porque aquilo, já que limpava de vez em quando. Mas tinha época, em que realmente era impossível dizer, qual o ser que já estaria habitando a tal despensa. Mas a lata com o arroz, daquelas de vinte litros com tampa, estava fechada, enfiava a tigela e trazia derramando pelas bordas; mas devolvia a metade para a lata.

Quando pegava o arroz, via as “escolhas”, o quem vem a ser simplesmente um grão que não foi descascado pela máquina; pensava ligeiramente os tempos de farturas. Meu avô tinha uma fazenda umas sete léguas distantes da cidade; chamada de Fazenda Duvidosa. Até hoje não sei porque a fazenda tem este nome. Mas ela era de causar dúvidas. Tinha-se de tudo, roça de arroz aqui, dois riachos acolá, cheios de traíras, saborosas na brasa, roça de feijão; e era bom um feijão novo com caldo fino, “capitão-de-feijão”... gostoso. Levava azeite de babaçu, que no Maranhão abunda, cheiro-verde picado e, claro, a farinha. Amassava-se tudo na mão, fazendo um bolinho ao comprido; depois ia para a fritura, coisa boa mesmo. Galinha ao molho-pardo..., e às vezes me dava dó do método de matança da distinta. Primeiro vinha a “carreira” pra pegar a penosa, um monte de desmiolados tentando pegar a galinha; sempre umas cenas hilárias, seguidas por uma de terror, pelo menos para o lado da galinha.

    - Oh Ginú, traga logo isso menino! Gritou minha mãe.

    - Tô indo mãe!

Minha mãe pisava nas pernas e ia despenando o pescoço, depois dava umas batidinhas nele até ficar vermelho, depois a facada... o sangue espirrando para dentro de uma tigela, minha mãe com a ponta da faca mexendo a tigela pra misturar com alguma coisa; esse sangue seria usado mais tarde.no molho A galinha se debatia nos seus derradeiros momentos de agonia, ainda abria e fechava o bico, piscava os olhos, secos sem lágrimas... quando não se ia usar o sangue, então a morte vinha por um puxão do pescoço, que apartava as vértebras... quando se jogava a galinha no chão pra terminar de morrer, algumas ainda saiam correndo, com a cabeça deslocada... era uma graça maior para os que assistiam, esta cena. Mas eram somente os derradeiros desejos de uma galinha; sair correndo...

- Tome moço – dizia despejando a meia-tigela numa sacola miúda e esfarrapada que nem quem a carregava.

Naquele dia tinha um alvoroço na cidade, com muita gente chegando da roça, convocados pelo vigário da paróquia, com fama de carismático, para uma procissão descendo do Patronato, no Morro da Saudade, até a Matriz de Nossa Senhora dos Remédios. Tinha um detalhe: essa procissão, as pessoas tinham que dar provas de desprendimento deste mundo, e elevar ao máximo o sentimento de busca da fé, ou seja, seria como um derradeiro pedido a Deus, para que mandasse chuva. Frei Cláudio, tinha avisado, que se todos quisessem ao mesmo tempo, chuva, Deus a mandaria naquele momento de intensa manifestação de fé, então estavam convocados somente os fiéis que se juntariam ao único pedido daquela multidão... chuva!

O dia amanhecera claro e ensolarado e pra não variar, nenhum sinal de nuvem no céu. Como viria a água, justo naquele dia? Mas ninguém conhece as intenções Dele. A tarde seria daquelas dos quarenta e cinco graus costumeiros; um forno.

Ao meio dia, já começara a aglomeração na frente do Patronato, onde funcionava o seminário para meninas, o Santa Catarina Labouré, e onde as freiras já começavam a jactância maternal para àquele povo, sedento de água, e saciando-se de fé, que parecia como uma nuvem invisível, a pairar sobre as cabeças desnudas daquele povo todo; dava dó. Alguns procuravam no céu alguma coisa, mas somente o azul infinito se manifestava. Tinha-se uma bela visão da cidade, de cima daquele morro, que com o nome de Saudade, denotava tanta, naquele dia. O horizonte mostrava-se também límpido e longínquo, deixando a alma sumir junto. Chover naquele dia, somente milagre. Mas a procissão estava marcada para as quatro da tarde; a chuva tinha esquecido daquele compromisso com certeza. Alguns começaram a aparecer com umas pequenas pedras na cabeça, onde, em cima das quais acendiam uma vela, já amolecidas pelo calor. Em pouco tempo, uma pedreira já não seria suficiente, para conter tamanha demanda por pedras.

As duas e meia da tarde, chegou Frei Pio, maranhense robusto de fé e conservadorismo, mas pio na fé e muito querido dos fiéis. Era quem sempre puxava as Aves Maria na igreja Matriz - voz robusta, grave -; depois incorporou a Salve Rainha ao meio-dia, cantada, pois rezada seria uma hora de joelhos, já que a oração pedia este respeito. Conversou com algumas senhoras, que se achegaram dele quando o viram chegando. Era invejável o carisma daquele frade franciscano e o respeito que impunha pela fé aos fiéis. Foi logo passando um sermão naqueles em que, o bafo da cachaça não deixava dúvidas de haviam passado antes, no mercado da Pedra, já que era uma segunda igreja (no sentido de reunir) aquele local para o povo que vinha da roça, mas nada que abalasse a verdadeira fé, era mais hábito mesmo, a fé era real e sincera. Frei Pio sabia disso. Começou então, a passar o dedo pelo seu terço de contas pretas e a rezar com sua voz grave. Parecia um trombone. Ele me contou várias vezes como fazia para manter aquele vozeirão intacto. Limão com mel gargarejado todas as manhãs. O cheiro de vela, deixava nauseabundo qualquer um que não estivesse acostumado a acender velas. As três e meia, apareceu Frei Cláudio, um frade franciscano alemão, de Köln (Colônia), de família rica, porte atlético, barba ligeiramente grisalha, mas de uma sensibilidade para com a pobreza incompreensível.

Com a chegada do Frei, que conduziria a procissão, os que estavam sentados, levantaram-se e os hinos para a Virgem começaram a eclodir, propagando-se em ondas. Interessante esse fenômeno, esse atraso nas ondas de som, deixa impossível uma sincronização em toda a multidão, mas de dentro não se tem essa impressão. Frei Cláudio colocou a estola branca por sobre a camisa de listras azuis, que ganhara de alguma senhora da sociedade, já que a maioria não poderia fazer essa caridade. Os franciscanos ainda mantêm o ensinamento do fundador da Ordem dos Frades Menores, São Francisco, usando o hábito bege nas regiões quentes, mas não é obrigatório. Frei Cláudio era moderno e dispensava o hábito, mas estava banhado pelo suor e, como prometido, as quatro em ponto deu inicio à procissão. Um carro com alto-falantes emprestava coragem aos hinos e ajudava na organização. Começaram a descer o morro, rumo à Matriz. Seria coisa de quatro kilometros, nada difícil, mesmo naquele calor.

A procissão já começava a endireitar-se na avenida principal, quando se ouviu um estrondo, há tanto tempo esquecido daqueles moucos ouvidos. Todos olharam para o céu, mas este continuava como sempre, azulzinho.

Eu tinha ficado no morro, vendo, pois não havia nada para fazer naquele sábado, também não acompanharia a procissão, então fiquei com uns amigos, confabulando asneiras. Foi com medo e susto, que ouvi aquele estrondo. Olhei o horizonte e o susto foi maior! Negro. Uma faixa enorme no horizonte, do lado do nascente, de ponta a ponta, baixa ainda, indicando que estava longe. Um terror tomou conta de mim. Olhei a procissão lá embaixo, que não poderia ver a faixa, pois o morro tirava a visão, e do outro lado, do poente, o sol continuava a castigar. Mas à frente da procissão, Frei Cláudio sentiu o estrondo dentro do coração, e não quis acreditar. Seguiram-se vários outros, e um vento forte trouxe o cheiro característico da chuva, já esquecidos naquelas narinas. Antes da chuva, outra chuva já começava a principiar-se: chuva de lágrimas.

Quem ousaria não acreditar em milagres?

Grossas gotas esparsas, precipitaram-se sobre aquela multidão, que mistificada pelo milagre, chorava e rezava. Em poucos minutos o céu era um azul profundo, cinzento escuro, rapidamente engolindo aquele sol castigador, e uma pesada chuva começou a banhar a todos e trovões saudavam a coragem e a fé daquela gente. Então, Ele fez-se presente. Indescritível alegria. Frei Cláudio, abaixou a cabeça e sentiu um gosto de sal na boca, não era suor desta vez, mas lágrimas. Pela primeira vez presenciava um milagre. Os soluços misturados com lágrimas, era a equânime da fé com o desejo. Os raios rasgavam o céu com tal intensidade, que os pés sentiam as ondas de choque, que se alastravam até o coração. O desejo de todos, era ser atingido por aquele raio, divino, sem sombra de dúvidas. A história se encarregaria de contar aos netos a alegria indescritível daquela gente, talvez como faço agora. Batiam palmas, cantavam, choravam a maioria, abraçavam-se, pulavam, enfim, ninguém conseguia, apesar de todos tentarem, expressar aquela alegria. E a chuva bondosamente, despencava-se em baldes sobre suas cabeças. Em pouco tempo poças d’água serviriam de banheiras, e já não era procissão, mas multidão, pois todos começaram a sair de casa, para banhar-se na fé daqueles que agora começavam a ficar contritos e a soluçar, retomando a procissão. Mas a cidade continuava a sair para o banho divino; algumas crianças pequenas desconheciam aquela manifestação da natureza. Choravam de medo, não de alegria, mas assim como o sol, a chuva vem para todos. Frei Cláudio caminhava de cabeça baixa, já não conseguia falar, mas mantinha os punhos cerrados contra o peito, com um choro já sem lágrimas, de soluços apenas. Tremia, não de frio, mas do ardor daquele milagre. Ficaria conhecido por aquela profecia, desferida com fé, e, agora orgulho; procurava palavras bonitas pela cabeça para fazer um agradecimento, mas Ele, também estava a divertir-se, no seio daquela gente, não ouviria os agradecimentos, então se contentou em deixar para a hora da oração do deitar; talvez lá ao pé da cama, alguma palavra tentasse, mas já tinha certeza que nenhuma língua conteria uma palavra que expressasse aquilo que nem ele saberia como fazer. Concentrou-se em terminar a procissão e a preparar a homilia da missa que se seguiria.

Eu, molhado que nem um pinto, me lambuzava na lama e nem lembrava que os céus continuavam a despencar.

E quem disse que a multidão queria entrar na igreja? Queriam mesmo era ficar na chuva. Alguém foi avisar o frei da vontade coletiva, que então exclamou.

- Que seja missa campal! Ouviu-se um viva, e logo, vivas a Nossa Senhora eram unanimidade.

Incontestável milagre.

Obviamente, minha mãe, católica como era, estava misturada à multidão, contando continhas no seu terço de prata, essas continhas reluziam, de tanto serem contadas e rezadas e esfregadas. Estava ensopada, banhava, lavada, de alma; o talco Pompom, que ela dizia cheirar a bunda de neném, deixava umas listras brancas no pescoço, se escondendo por debaixo daquelas fofas papadas. Ah, que sutileza de mulher. Dividiria até o último caroço de arroz ao meio, se fosse para dividir a fome com outro. Mas nunca tinha precisado fazer isso, apenas pequenos apertos, são as vantagens da vida espartana, nunca falta nada.

Vamos a homilia.

“Irmãos e irmãs... (soluçou) hoje Nosso Senhor mandou um milagre... que todos aqui estamos presenciando. Todos banhados por uma chuva divina, que tanto precisávamos,... nos dar coragem... (soluços)... faremos um marco com as pedras que todos carregaram sobre a cabeça, para registrar o milagre. Todos podem ir para casa, de alma lavada... permaneçam vigilantes até meia-noite, em oração, agradecendo... amanha, as 08h00, rezaremos uma missa de ação de graças. O povo que veio da roça, dirijam-se à Casa Paroquial, para abrigo; tentaremos providenciar um sopão, para diminuir a fome de muitos; pedir jejum, seria demais, mas para os que se sentem bem, façam-no, Ele merece”.

Estava em casa, já com roupa seca, quando minha mãe chegou, ensopada, pois ainda chuviscava e a noite começava a dar seu ar da graça, com uma leve brisa fresca. Minha mãe foi direto pro quarto, dizendo que iria ficar em jejum e não queria ser incomodada. A chuva começou a engrossar e se arrastou noite adentro.

Pela manhã, um cheiro molhado no ar, ah, que perfume agradável; qualquer perfume mais a felicidade, é uma soma incontestável. O céu com grossas nuvens, mostrava um céu há tanto tempo imutável. O sol brincava de esconde-esconde com as nuvens, e a brisa era a supervisora daquela brincadeira infantil. Cheiro de terra molhada; logo as babujas dariam o ar da graça, e o verde explodiria em uma semana.

Minha mãe saiu cedo pra missa dominical, pois disse que rezariam o terço antes da missa e não queria também ficar de pé, pois a igreja estaria superlotada naquela manhã; tanto estava que a missa foi outra vez campal; e vem mais chuva, pois se cansaram as nuvens e sol do esconde-esconde, era de se acreditar que o sol andaria cansado. Minha mãe chegou outra vez ensopada em casa, mas renovada, parecia a felicidade esvoaçada em uma borboleta.

Naquele dia, tive eu mesmo que correr atrás da galinha, pois o molho-pardo seria um almoço e tanto, para comemorar; não assisti a cena da matança, mas a galinha estava uma delícia. Machuquei o joelho, numa manobra esperta da galinha; mas ela deu azar, caí em cima dela.


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