segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O Peixeiro

Ando relaxado com meus contos ultimamente. Também, tenho estado muito ocupado com o trabalho; sim leitores, eu trabalho... e um bocado! Aos domingos tenho o hábito de ir à feira comprar beiju. Adoro essa iguaria nordestina. Os mais sofisticados, têm coco e queijo ralado; ou só coco, ou só queijo. Enfim, tem ela sem coco e queijo; a tradicional... ufa!

As feirinhas no Rio, são nômades; um dia na Moraes e Silva1, outro ali perto do América, cada dia num canto. Essa perto do América2, é a que vou, por ser a mais perto. Sempre vou direto à banca da D. Ana, uma senhora rechonchuda, ajudada permanentemente por sua filha, muito gentil por sinal... ambas. A filha cuidava do atendimento e D. Ana cuidava de fazer as tapiocas.

Estava aguardando ela fazer meu pedido, quando se achegou um sujeito da barraca da frente. Chegou se aboletando pro lado da filha da D. Ana, soltando umas investidas enviesadas, mas a garota era um sabão, se saia com maestria dos gracejos e dos engraçadinhos.

Antes de ele aparecer, estava eu ouvindo a conversa das duas com outros feirantes; dizia que o marido da filha, estava muito mal, evacuando sangue “por cima e por baixo” e, segundo a filha, era hemorragia gástrica; eu palpitei – não sei porque – que fosse úlcera do duodeno (?!). Um dos feirantes – vendia frangos -, explicou que deveria fazer um monte de exames, citando os “com certeza” e os “e talvez...”; uma verborragia em termos veterinários – inútil a todos – para explicar a urgência no tratamento. Bom, creio que uma pessoa que esteja jorrando sangue por cima e por baixo, não deva estar bem, de forma alguma.

- Ele tá branquinho, sem sangue o coitado – disse D. Ana.

- Mas ele está em casa, não foi ao médico? – Perguntei.

- Não filho, ele não quer ir ao médico de jeito nenhum!

- Mas hoje eu o carreguei até o Andaraí3; ficou internado – disse a filha.

- Ele tem o que mesmo? – perguntou um transeunte que parou em frente à banca.

- Ele tá evacuando...

- Hemorragia gástrica. – atalhou a filha.

- Mas menina, ele num tá mesmo evacuando sangue por cima e por baixo?

- É mãe, mas é por causa da hemorragia gástrica. – Isso deixava a filha embaraçada.

- Mas isso é muito sério! – Retrucou o transeunte. Por sinal um cabrinha chato!

- Isso mesmo, falta de sangue no organismo dá falência de órgãos, rim, fígado, coração... principalmente os rins; aí é um adeus! - o veterinário...

- Vixe Maria, menino, assim ‘cê me deixa assustada... – Tremendo já estava D. Ana.

- ... e ele ainda vai deixar essa lindeza aqui viúva! – disse apontando para a filha de D. Anna.

- Credo! – benzeu-se D. Ana.

Nisso, a filha foi ligar pro hospital e pedir informações, pois naquela conversa, despertou nela alguma coisa; por via das dúvidas foi telefonar. O marido tinha ficado tomando soro e estava bastante abatido; branco. Rapaz novo de 25 anos, flor da idade, casada com Carla já fazia um tempo; é motoboy, andando pra cima e pra baixo que nem juízo de doido e, sofrendo mais que sovaco de aleijado. Só comia porcarias, salgados das mais péssimas condições de higiene, daqueles de dois, três dias, requentados para os incautos. Não tinha hora para comer e a cada gorjeta ganha, um refrigerante. Bom, uma úlcera, devia ser o mínimo. O problema é que apareceram uns vômitos com partículas vermelhas de sangue, depois sangue mesmo, vermelho; já excretava sangue fazia uns quatro dias. Carla andava muito entretida com o trabalho, saia cedo, não tomava caso do problema, achava o Osvaldo muito frouxo pra doenças; e também tinha a faculdade de Educação Física a noite.

Mas a brancura dele já era esquisita, e isso inquietou Carla, então naquele dia arrastou o marido pro hospital, chamou os bombeiros, que o levaram quase a força, depois voltou pra ajudar a mãe; não tinha muito que fazer lá, portanto...

O sujeito de que falava – o da barraca da frente -, depois de desferidas as gracinhas, reclamou que um transeunte falou alguma coisa sobre cachaça, e este defendeu a cachaça, dizendo que cachaça era coisa boa.

- Ruim é dinheiro, compra tudo! Não tem graça.

- Tem razão – retruquei, pois achei original.

O sujeito era cheiro de peixe; o peixeiro da banca da frente. Usava um boné já encardido, parecia que um dia foi preto. Tinha amarrado à cintura uma capa plástica com listras grossas verde, na vertical, até o chão. Usava botas de borracha cano alto, brancas. Tinha escamas até no ralo bigode. A cara amassada de ressaca, ou de sono, pois pelo jeito ainda estava com álcool nas veias, o que ele confirmou depois. Olhei as mãos do sujeito, engelhadas pelo contato constante com a água. As unhas, com um alqueire de sujeira debaixo de cada uma. Junto ao engelhado das palmas das mãos, soltavam-se pequenos pedaços de pele; era o fígado reclamando seu quinhão. O estado das mãos do sujeito era feio. Mas algo me chamou atenção, um corte sobre o polegar esquerdo.

- Que foi isso? – Perguntei.

- Foi a peixeira, dei uma descuidada, e vupt, saiu um bife!

- Por que você não usa luva de aço? – Indaguei.

- Perde o tato, a sensibilidade...

- Mas evita estes acidentes.

- Foi uma coisinha fofa que me tirou a atenção, parou em frente e me tirou as “oiças4”.

- Mas parece uma queimadura...

- Cauterizei.

- Como?

- Esquentei a peixeira com o isqueiro, depois coloquei em cima!

- Quê?!

- Ué, parou de sangrar na hora!

- Cara, você é meio doido...

- Maluco de pedra! Já viu como se trata um peixe?

- Não.

- Acompanhe-me, então... – fui à banca do sujeito; um cheiro de peixe insuportável e escamas pra todo lado, junto com vísceras de peixes, ovas, sangue de peixe, camarão, lulas e um monte de filés amontoados e ainda parecia que tudo estava à venda. (!?)

- Vou te mostrar com se trata uma belezura destas – disse pegando um peixe. Isso daqui é uma pescada, filé de pescada é o que mais sai, isso frito com uma cachacinha, humm... – disse lambendo os beiços. E começou amolando a faca numa pedra de amolar já carcomida de tanto afiar lâminas, depois de várias passadas na pedra, olhou a faca e disse que ela agora cortaria até o vento. Começou cortando as nadadeiras dorsais, depois deu um corte rápido e sacou fora o rabo, depois com um corte certeiro, abriu a barriga e sacou com a mão as vísceras e jogou num tonel, já cheio daquilo; o cheiro era um tema a parte. Causava náuseas, mas nosso amigo continuava tratando do peixe; já arrancava as guelras e começava a lanhar. Antes tinha observado que ele não havia tirado as escamas convencionalmente, como eu conhecia, que era raspando as escamas, ele simplesmente, cortou cirurgicamente a pele abaixo da escama, deixando a mostra uma carne branca e limpinha. Mergulhou então o peixe num balde e estava lavado. Passou então a tirar os filés, que era afinal, o produto final daquele trabalho. Impressionou a rapidez e a precisão com que tudo aquilo era feito.

- Agora o patrão pode levar, foi especial, peixe fresco mesmo. – fiquei na onça!

- Tá bem, joga o bicho na balança.

- Um kilo e 200 e alguma coisa... um kilo e duzentos! Só... oito reais; pronto.

Paguei o peixe e fui embora, passando pela barraca da Dona Ana e pegando meus beijus que já estavam suando nos saquinhos de plástico. Fui caminhando e pensando no sujeito do peixe. Devia ter uma vida desregrada, cheia de vadiagem, e lutava na feira fazendo aquele trabalho. Havia dito que a mulher sentia o cheiro dele de longe, cheiro de peixe, e ainda misturado com catinga de sovaco. Meia hora de banho e ainda tinha que tomar outro banho de desodorante barato; pra enganar o cheiro e a mulher não reclamar muito. Depois tinha que lavar as botas pela segunda vez, pois o cheiro depois seria desagradável. O Serafim tinha nome de anjo, mas só o nome, pois era o capeta em pessoa.

Como de costume, depois do banho começava a ladainha da mulher.

- Tu não dormiste em casa ontem, Serafim...

- É que o peixe demorou muito lá em Niterói, quando chegou eram umas duas da manhã, as cinco tinha que estar montando a feira...

- E...

- Bom, assamos umas piabas e ficamos “beliscando” uma pinguinha... Pra passar o frio, né?

- Por que não ligou então?

- E eu num fiz isso, hein?!

- E...

- Uma voz do celular disse que tinha uns “pobremas” com seu telefone...

- É por que eu não comprei mais os cartões, tu também só alui. Mas este mês eu comprei o cartão e não tem “pobremas” nenhum viu! Vem cá, que bafo é esse?

- ... (cabisbaixo)

- Tu bebeste ordinário?

- Cheirei, só cheirei, mas a bicha deixa um cheiro danado.

- Mas cachorro, tu acabou de tomar banho, esse cheiro ta vindo de teu buxo.

- Foi só agora, na saída,... uma “dosinha” só!

- E esses “zóis” de fogo? É cana ou ficou na vadiagem com teus amigos a noite toda, e nada de esperar peixe?

- Liga pro seu Alcindo então, pergunta a hora que ele chegou.

- As cinco da tarde, eu liguei ontem quando você saiu, pra perguntar que horas estava previsto o barco chegar, e ele disse que tinha acabado de chegar. O seu Alcindo “conseguiu” falar comigo ontem... Homem educado aquele...

- Morre os dois!

Ela encarou o Serafim, colocou a mão na cintura, fez uma cara de desdém, virou-se e foi pra cozinha, fazer alguma coisa pra aquele “ordinário” comer. Serafim por sua vez se jogou no sofá e aninhou uma almofada debaixo da cabeça e assistir um pouco de televisão, enquanto a mulher preparava um “rango”. O dia inteiro, só comeu uns pastéis e alguns tonéis de pinga, que ele jogava na goela de uma vez; meio copo da “marvada”. A TV no noticiário, e Serafim não estava lá assistindo, quando veio à mente a imagem de Carla, um sonho vivo. “O vestido curto, muito cosido ao corpo, enluvava-lhe as formas, dando-lhe um ar esperto de menina que volta do colégio a passar férias com a família”.5 O dia todo aquela “malvadeza” passando pra lá e pra cá, os dias em que ela enluvava um vestido o tirava do sério; ele ia lá dar umas “beliscadas” no destino. De repente veio a voz da mulher a tirar-lhe o sonho

- Vai pra mesa Serafim!

- Tô indo, disse, arfando ao se levantar do sofá.

Na mesa, um guisado de peixe com cebolas inteiras, de cheiro agradável, não para Serafim que fica engulhando somente em sentir novamente o cheiro de peixe, no qual passa o dia inteiro esfaqueando-os, repuxando suas entranhas, jogando-as no chão, e, pisando nelas o dia inteiro. Enfastiado, Serafim meteu a primeira colher da “sopa” na boca.

- Tá aguada...

- Então infeliz, vai tu mesmo fazer tua gororoba.

- Num faz assim... minha formosura. Sílvia era muito bem feita de quadris e de ombros, a volta enérgica da cintura, e a suave protuberância dos seios, produziam nos sentidos de Serafim uma deliciosa impressão artística; era em corpo uma rival à Carla. Só que Sílvia era fogosa e “conhecida”, Carla, carne nova. Carla que me aguarde.

O despertador tiniu nos ouvidos de Serafim, 19h00! Era hora de acordar e se aprontar para o trabalho. Não poderia existir pior momento da vida de um homem, principalmente num homem chegado às extravagâncias da vida. A cabeça parecia querer explodir, latejando como um músculo preste a entrar em fadiga. As jugulares saltando-lhe ao pescoço, como algo que queira sair dali e tomar vida neste mundo. A boca, um gosto horrível de um corrimão de igreja. Os olhos inchados, nariz entupido, escorrendo água, estressado, um modorrento pedindo o fim do mundo. Esfregou os dedos nas beiradas dos olhos e arrastou de lá uma sebosa remela gosmenta. Ausência total de humor, gosto de cebola vindo-lhe à tona. Um arroto maldito denunciando as gastrites pedintes, tudo às escuras ainda. Deu uma larga e gostosa fungada no tempo; precisava de oxigênio, para a pior parte, levantar-se da cama e procurar o banheiro, lá então jorraria de si aquele líquido amarelo, fedido, de álcool e ruína. E aquilo subia às narinas. Uma ânsia de vômito dá um recado, e aquele líquido vem até perto da boca, deixando o gosto azedo e amargo do outro preço pago pela felicidade de ontem à noite, pelo prazer de simplesmente “sair daqui”, desta Terra maldita e indigna. Mas a idéia de encontrar a Carla, era o sedativo para esses males, agora iria encontrá-la, ir a sua banca e desejar “Bom dia, minha coisinha fofa!”.

Jorro de água fria na cara! Difícil acordar totalmente; tem que ser aos poucos. Uma arfada e começou com o vai-e-vem da escova naqueles cacos de dentes; só se salva a frente, mesmo assim, com suas pequenas cáries anunciando sua chegada. Outras vezes, já deu uma raspadinha entre os dentes, usando a ponta da tesoura; realmente fica feio, convenhamos. Era boca-da-noite e já era amanhecendo no trabalho de Severino. Seria uma dolorosa viagem de “buzú”6 até Niterói, Mercado dos Peixes. Silvia também trabalhava, fazendo faxina nas casas alheias, mas beliscava um bom dinheiro com esse trabalho, que às vezes folgava o Severino; ela trabalhava durante o dia, ele, noite toda e mais da metade do dia. Não era brincadeira de gente pequena não, aquilo realmente seria coisa me macho, e Severino suportava aquilo tudo embebido em álcool, num processo vicioso de morte matada.

É uma luta desigual, o homem querendo trabalhar e fazia isto se arrastando contra a própria vontade de não fazer aquilo, do outro a vontade de beber, que espantaria o desânimo. Era um prazer imenso a euforia de descaso com a vida, empapuçando-se de cachaça; aquilo aliviava, liberava os fardos, a tristeza; roubava-lhe a vergonha.

Dois anos depois, voltei à tal feira; somente vi D. Ana e, ao perguntar por Carla, disse-me que já não a ajudava muito, pois estava fazendo uma pós-graduação e agora tinha um filho pra cuidar também. O peixeiro, esse, se livrou desse vale de lágrimas... pelas mãos de sua adorada, a cachaça.


1 Rua Moraes e Silva, bairro Tijuca no Rio de Janeiro.

2 Sede do América Football Club, Rua Campos Salles, Tijuca.

3 Hospital do Andaraí, Rio.

4 A atenção.

5 Casa de Pensão, Aluísio Azevedo

6 Uma irreverente maneira de chamar os Ônibus.