terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O Enigma da Uruguaiana

Finalmente desvendado! e o mérito se deve ao cara de nome mais estranho que já vi; [...] Estrella Akersztejn!
Mas, do que se trata?
Já algum tempo, que nós aqui na empresa, ficamos falando uns aos outros, o que seria a frase falada ao final da mensagem no Metro da Uruguaina... aqui no Rio, as mensagens de anúncio das estações, são dadas em português e inglês, tipo, "Próxima estação, Uruguaiana, cuidado com o vão entre o trem e a plataforma", pois nessa estação, existe um grande vão, devido a estação ser em curva; logo após, vem a mensagem em inglês: "Next stop, Uruguaina Station, %$#@@*&$"... é, esses grafismos expressam o enigma. Bom, uma coisa eu tenho certeza, vou morrer sem aprender português, e meu inglês fraquinho, escapa pra perguntar onde fica a rua tal... e coisas assim.
Sempre que lembro ao chegar na Uruguaiana, fico de "oiças" ligadas pra tentar entender o que a mensagem "cifrada" quer dizer, e, tenho mais dois colegas no trabalho que também faziam a mesma coisa; pura falta do que fazer! nunca chegávamos a uma conclusão e, parece que para ajudar, na maioria das vezes a mensagem parece(ia) ser maldosamente "cortada". Hoje, me lembrei do tal enigma e fiquei atento e ela me foi incrivelmente "clara" (só rindo!), dizia: "..., by the man"! isso não faz nenhum sentido pra mim, e, todo contente, anunciei que achava que tinha desvendado, mas que não tinha nenhum sentido e também que a dúvida continuava... e como sempre, as mesmas sacanagens! volta e meia voltávamos com isso... já durava meses! falta do que fazer, mas divertia, não que o Jacob (o cara do nome estranho!) tenha acabado com a brincadeira, logo arrumaremos outra! hehe! sentei na mesa, despreocupado, quando o Galego chegou, o outro que estava na tentativa do desvendamento do enigma (só rindo de novo!); estávamos comentando sobre a "nova" frase que eu tinha ouvido hoje, quando o Jacob, do outro lado ouviu a nossa conversa e exclamou! "Para os que nunca foram a Londres,... mind the gap"! impressionante como tudo agora faz sentido,... bom, vamos conferir, mas não restam dúvidas! nem adianta agora ficar dizendo isso e aquilo, mas se eu não insistisse no tal enigma, eu e os que me sacanearam, iam ficar com a tal dúvida (só rindo!).
A lição é: nenhuma!
Só rindo até mijar nas calças!... e a história dessa brincadeira se perpetuará por longos anos, talvez passando aos nossos netos... e era uma brincadeira sem pé nem cabeça! valeu Jacob!

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O Peixeiro

Ando relaxado com meus contos ultimamente. Também, tenho estado muito ocupado com o trabalho; sim leitores, eu trabalho... e um bocado! Aos domingos tenho o hábito de ir à feira comprar beiju. Adoro essa iguaria nordestina. Os mais sofisticados, têm coco e queijo ralado; ou só coco, ou só queijo. Enfim, tem ela sem coco e queijo; a tradicional... ufa!

As feirinhas no Rio, são nômades; um dia na Moraes e Silva1, outro ali perto do América, cada dia num canto. Essa perto do América2, é a que vou, por ser a mais perto. Sempre vou direto à banca da D. Ana, uma senhora rechonchuda, ajudada permanentemente por sua filha, muito gentil por sinal... ambas. A filha cuidava do atendimento e D. Ana cuidava de fazer as tapiocas.

Estava aguardando ela fazer meu pedido, quando se achegou um sujeito da barraca da frente. Chegou se aboletando pro lado da filha da D. Ana, soltando umas investidas enviesadas, mas a garota era um sabão, se saia com maestria dos gracejos e dos engraçadinhos.

Antes de ele aparecer, estava eu ouvindo a conversa das duas com outros feirantes; dizia que o marido da filha, estava muito mal, evacuando sangue “por cima e por baixo” e, segundo a filha, era hemorragia gástrica; eu palpitei – não sei porque – que fosse úlcera do duodeno (?!). Um dos feirantes – vendia frangos -, explicou que deveria fazer um monte de exames, citando os “com certeza” e os “e talvez...”; uma verborragia em termos veterinários – inútil a todos – para explicar a urgência no tratamento. Bom, creio que uma pessoa que esteja jorrando sangue por cima e por baixo, não deva estar bem, de forma alguma.

- Ele tá branquinho, sem sangue o coitado – disse D. Ana.

- Mas ele está em casa, não foi ao médico? – Perguntei.

- Não filho, ele não quer ir ao médico de jeito nenhum!

- Mas hoje eu o carreguei até o Andaraí3; ficou internado – disse a filha.

- Ele tem o que mesmo? – perguntou um transeunte que parou em frente à banca.

- Ele tá evacuando...

- Hemorragia gástrica. – atalhou a filha.

- Mas menina, ele num tá mesmo evacuando sangue por cima e por baixo?

- É mãe, mas é por causa da hemorragia gástrica. – Isso deixava a filha embaraçada.

- Mas isso é muito sério! – Retrucou o transeunte. Por sinal um cabrinha chato!

- Isso mesmo, falta de sangue no organismo dá falência de órgãos, rim, fígado, coração... principalmente os rins; aí é um adeus! - o veterinário...

- Vixe Maria, menino, assim ‘cê me deixa assustada... – Tremendo já estava D. Ana.

- ... e ele ainda vai deixar essa lindeza aqui viúva! – disse apontando para a filha de D. Anna.

- Credo! – benzeu-se D. Ana.

Nisso, a filha foi ligar pro hospital e pedir informações, pois naquela conversa, despertou nela alguma coisa; por via das dúvidas foi telefonar. O marido tinha ficado tomando soro e estava bastante abatido; branco. Rapaz novo de 25 anos, flor da idade, casada com Carla já fazia um tempo; é motoboy, andando pra cima e pra baixo que nem juízo de doido e, sofrendo mais que sovaco de aleijado. Só comia porcarias, salgados das mais péssimas condições de higiene, daqueles de dois, três dias, requentados para os incautos. Não tinha hora para comer e a cada gorjeta ganha, um refrigerante. Bom, uma úlcera, devia ser o mínimo. O problema é que apareceram uns vômitos com partículas vermelhas de sangue, depois sangue mesmo, vermelho; já excretava sangue fazia uns quatro dias. Carla andava muito entretida com o trabalho, saia cedo, não tomava caso do problema, achava o Osvaldo muito frouxo pra doenças; e também tinha a faculdade de Educação Física a noite.

Mas a brancura dele já era esquisita, e isso inquietou Carla, então naquele dia arrastou o marido pro hospital, chamou os bombeiros, que o levaram quase a força, depois voltou pra ajudar a mãe; não tinha muito que fazer lá, portanto...

O sujeito de que falava – o da barraca da frente -, depois de desferidas as gracinhas, reclamou que um transeunte falou alguma coisa sobre cachaça, e este defendeu a cachaça, dizendo que cachaça era coisa boa.

- Ruim é dinheiro, compra tudo! Não tem graça.

- Tem razão – retruquei, pois achei original.

O sujeito era cheiro de peixe; o peixeiro da banca da frente. Usava um boné já encardido, parecia que um dia foi preto. Tinha amarrado à cintura uma capa plástica com listras grossas verde, na vertical, até o chão. Usava botas de borracha cano alto, brancas. Tinha escamas até no ralo bigode. A cara amassada de ressaca, ou de sono, pois pelo jeito ainda estava com álcool nas veias, o que ele confirmou depois. Olhei as mãos do sujeito, engelhadas pelo contato constante com a água. As unhas, com um alqueire de sujeira debaixo de cada uma. Junto ao engelhado das palmas das mãos, soltavam-se pequenos pedaços de pele; era o fígado reclamando seu quinhão. O estado das mãos do sujeito era feio. Mas algo me chamou atenção, um corte sobre o polegar esquerdo.

- Que foi isso? – Perguntei.

- Foi a peixeira, dei uma descuidada, e vupt, saiu um bife!

- Por que você não usa luva de aço? – Indaguei.

- Perde o tato, a sensibilidade...

- Mas evita estes acidentes.

- Foi uma coisinha fofa que me tirou a atenção, parou em frente e me tirou as “oiças4”.

- Mas parece uma queimadura...

- Cauterizei.

- Como?

- Esquentei a peixeira com o isqueiro, depois coloquei em cima!

- Quê?!

- Ué, parou de sangrar na hora!

- Cara, você é meio doido...

- Maluco de pedra! Já viu como se trata um peixe?

- Não.

- Acompanhe-me, então... – fui à banca do sujeito; um cheiro de peixe insuportável e escamas pra todo lado, junto com vísceras de peixes, ovas, sangue de peixe, camarão, lulas e um monte de filés amontoados e ainda parecia que tudo estava à venda. (!?)

- Vou te mostrar com se trata uma belezura destas – disse pegando um peixe. Isso daqui é uma pescada, filé de pescada é o que mais sai, isso frito com uma cachacinha, humm... – disse lambendo os beiços. E começou amolando a faca numa pedra de amolar já carcomida de tanto afiar lâminas, depois de várias passadas na pedra, olhou a faca e disse que ela agora cortaria até o vento. Começou cortando as nadadeiras dorsais, depois deu um corte rápido e sacou fora o rabo, depois com um corte certeiro, abriu a barriga e sacou com a mão as vísceras e jogou num tonel, já cheio daquilo; o cheiro era um tema a parte. Causava náuseas, mas nosso amigo continuava tratando do peixe; já arrancava as guelras e começava a lanhar. Antes tinha observado que ele não havia tirado as escamas convencionalmente, como eu conhecia, que era raspando as escamas, ele simplesmente, cortou cirurgicamente a pele abaixo da escama, deixando a mostra uma carne branca e limpinha. Mergulhou então o peixe num balde e estava lavado. Passou então a tirar os filés, que era afinal, o produto final daquele trabalho. Impressionou a rapidez e a precisão com que tudo aquilo era feito.

- Agora o patrão pode levar, foi especial, peixe fresco mesmo. – fiquei na onça!

- Tá bem, joga o bicho na balança.

- Um kilo e 200 e alguma coisa... um kilo e duzentos! Só... oito reais; pronto.

Paguei o peixe e fui embora, passando pela barraca da Dona Ana e pegando meus beijus que já estavam suando nos saquinhos de plástico. Fui caminhando e pensando no sujeito do peixe. Devia ter uma vida desregrada, cheia de vadiagem, e lutava na feira fazendo aquele trabalho. Havia dito que a mulher sentia o cheiro dele de longe, cheiro de peixe, e ainda misturado com catinga de sovaco. Meia hora de banho e ainda tinha que tomar outro banho de desodorante barato; pra enganar o cheiro e a mulher não reclamar muito. Depois tinha que lavar as botas pela segunda vez, pois o cheiro depois seria desagradável. O Serafim tinha nome de anjo, mas só o nome, pois era o capeta em pessoa.

Como de costume, depois do banho começava a ladainha da mulher.

- Tu não dormiste em casa ontem, Serafim...

- É que o peixe demorou muito lá em Niterói, quando chegou eram umas duas da manhã, as cinco tinha que estar montando a feira...

- E...

- Bom, assamos umas piabas e ficamos “beliscando” uma pinguinha... Pra passar o frio, né?

- Por que não ligou então?

- E eu num fiz isso, hein?!

- E...

- Uma voz do celular disse que tinha uns “pobremas” com seu telefone...

- É por que eu não comprei mais os cartões, tu também só alui. Mas este mês eu comprei o cartão e não tem “pobremas” nenhum viu! Vem cá, que bafo é esse?

- ... (cabisbaixo)

- Tu bebeste ordinário?

- Cheirei, só cheirei, mas a bicha deixa um cheiro danado.

- Mas cachorro, tu acabou de tomar banho, esse cheiro ta vindo de teu buxo.

- Foi só agora, na saída,... uma “dosinha” só!

- E esses “zóis” de fogo? É cana ou ficou na vadiagem com teus amigos a noite toda, e nada de esperar peixe?

- Liga pro seu Alcindo então, pergunta a hora que ele chegou.

- As cinco da tarde, eu liguei ontem quando você saiu, pra perguntar que horas estava previsto o barco chegar, e ele disse que tinha acabado de chegar. O seu Alcindo “conseguiu” falar comigo ontem... Homem educado aquele...

- Morre os dois!

Ela encarou o Serafim, colocou a mão na cintura, fez uma cara de desdém, virou-se e foi pra cozinha, fazer alguma coisa pra aquele “ordinário” comer. Serafim por sua vez se jogou no sofá e aninhou uma almofada debaixo da cabeça e assistir um pouco de televisão, enquanto a mulher preparava um “rango”. O dia inteiro, só comeu uns pastéis e alguns tonéis de pinga, que ele jogava na goela de uma vez; meio copo da “marvada”. A TV no noticiário, e Serafim não estava lá assistindo, quando veio à mente a imagem de Carla, um sonho vivo. “O vestido curto, muito cosido ao corpo, enluvava-lhe as formas, dando-lhe um ar esperto de menina que volta do colégio a passar férias com a família”.5 O dia todo aquela “malvadeza” passando pra lá e pra cá, os dias em que ela enluvava um vestido o tirava do sério; ele ia lá dar umas “beliscadas” no destino. De repente veio a voz da mulher a tirar-lhe o sonho

- Vai pra mesa Serafim!

- Tô indo, disse, arfando ao se levantar do sofá.

Na mesa, um guisado de peixe com cebolas inteiras, de cheiro agradável, não para Serafim que fica engulhando somente em sentir novamente o cheiro de peixe, no qual passa o dia inteiro esfaqueando-os, repuxando suas entranhas, jogando-as no chão, e, pisando nelas o dia inteiro. Enfastiado, Serafim meteu a primeira colher da “sopa” na boca.

- Tá aguada...

- Então infeliz, vai tu mesmo fazer tua gororoba.

- Num faz assim... minha formosura. Sílvia era muito bem feita de quadris e de ombros, a volta enérgica da cintura, e a suave protuberância dos seios, produziam nos sentidos de Serafim uma deliciosa impressão artística; era em corpo uma rival à Carla. Só que Sílvia era fogosa e “conhecida”, Carla, carne nova. Carla que me aguarde.

O despertador tiniu nos ouvidos de Serafim, 19h00! Era hora de acordar e se aprontar para o trabalho. Não poderia existir pior momento da vida de um homem, principalmente num homem chegado às extravagâncias da vida. A cabeça parecia querer explodir, latejando como um músculo preste a entrar em fadiga. As jugulares saltando-lhe ao pescoço, como algo que queira sair dali e tomar vida neste mundo. A boca, um gosto horrível de um corrimão de igreja. Os olhos inchados, nariz entupido, escorrendo água, estressado, um modorrento pedindo o fim do mundo. Esfregou os dedos nas beiradas dos olhos e arrastou de lá uma sebosa remela gosmenta. Ausência total de humor, gosto de cebola vindo-lhe à tona. Um arroto maldito denunciando as gastrites pedintes, tudo às escuras ainda. Deu uma larga e gostosa fungada no tempo; precisava de oxigênio, para a pior parte, levantar-se da cama e procurar o banheiro, lá então jorraria de si aquele líquido amarelo, fedido, de álcool e ruína. E aquilo subia às narinas. Uma ânsia de vômito dá um recado, e aquele líquido vem até perto da boca, deixando o gosto azedo e amargo do outro preço pago pela felicidade de ontem à noite, pelo prazer de simplesmente “sair daqui”, desta Terra maldita e indigna. Mas a idéia de encontrar a Carla, era o sedativo para esses males, agora iria encontrá-la, ir a sua banca e desejar “Bom dia, minha coisinha fofa!”.

Jorro de água fria na cara! Difícil acordar totalmente; tem que ser aos poucos. Uma arfada e começou com o vai-e-vem da escova naqueles cacos de dentes; só se salva a frente, mesmo assim, com suas pequenas cáries anunciando sua chegada. Outras vezes, já deu uma raspadinha entre os dentes, usando a ponta da tesoura; realmente fica feio, convenhamos. Era boca-da-noite e já era amanhecendo no trabalho de Severino. Seria uma dolorosa viagem de “buzú”6 até Niterói, Mercado dos Peixes. Silvia também trabalhava, fazendo faxina nas casas alheias, mas beliscava um bom dinheiro com esse trabalho, que às vezes folgava o Severino; ela trabalhava durante o dia, ele, noite toda e mais da metade do dia. Não era brincadeira de gente pequena não, aquilo realmente seria coisa me macho, e Severino suportava aquilo tudo embebido em álcool, num processo vicioso de morte matada.

É uma luta desigual, o homem querendo trabalhar e fazia isto se arrastando contra a própria vontade de não fazer aquilo, do outro a vontade de beber, que espantaria o desânimo. Era um prazer imenso a euforia de descaso com a vida, empapuçando-se de cachaça; aquilo aliviava, liberava os fardos, a tristeza; roubava-lhe a vergonha.

Dois anos depois, voltei à tal feira; somente vi D. Ana e, ao perguntar por Carla, disse-me que já não a ajudava muito, pois estava fazendo uma pós-graduação e agora tinha um filho pra cuidar também. O peixeiro, esse, se livrou desse vale de lágrimas... pelas mãos de sua adorada, a cachaça.


1 Rua Moraes e Silva, bairro Tijuca no Rio de Janeiro.

2 Sede do América Football Club, Rua Campos Salles, Tijuca.

3 Hospital do Andaraí, Rio.

4 A atenção.

5 Casa de Pensão, Aluísio Azevedo

6 Uma irreverente maneira de chamar os Ônibus.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Tormento da mente

Estava em pé quando ouvi o primeiro estampido seco de um disparo... sem antes entender o que ocorria, senti uma dor gostosa, uma coceira, ardência, que foi logo atendida com as unhas sujas. Quão grande foi o espanto de um toque gelado, como o sentimento de algo gosmento, mas sem dor, e ao olhar, ver a carne da cabeça do ombro trespassada... só então, uma dor lancinante apoderou-se, sem clemência... a dor me jogou ao chão, miraculosamente protegendo a cabeça de projéteis raspantes, por um pequeno elevado de terra, um montinho, que cobria a cabeça completamente, mas deixava o traseiro para a alça de mira inimiga... dolorosas chicotadas! mas sem antes, levar de fio-a-pavio, um pouco no lombo seco e maltratado de tantos dias de mochila, como ardia os raspantes. Antes que o chão me amparasse, outro perfurou-me o ombro, quase junto ao primeiro, indicando um bom atirador a apertar o gatilho; talvez entrincheirado... mas já estava a ir ao chão.

Enfim a chuva

Oh de casa! – Minha mãe tinha o hábito de deixar a porta da frente da casa aberta, para circular o ar – quente – daquele sertão nordestino. Era um sujeito em tiras. As roupas aos farrapos, pele e osso.

    - Diga aí! Respondeu minha mãe da sala de jantar, e espichou a cabeça para olhar para a porta da frente.

    - Meia-tigela de arroz, pelo amor de Deus! por caridade..., por...

    - Oh Ginú, pega uma tigela de arroz aí... depois traga aqui pro moço! Agüente aí viu!.

Dias difíceis aqueles. Não chovia fazia cinco anos e as únicas coisas verdes que existiam, eram pano de sinuca, óculos ray-ban e papagaio, como se dizia pelas ruas cheias de redemoinhos e poeira acompanhada; um calor de rachar miolos... realmente há cincos anos não caía um “caroço” de água no chão. Pra não dizer que não tinha mais coisas verdes, tinha umas mangueiras que tinham achado um "veiozinho" d'água e ainda estavam verdes; já as mangas, eram minguadas. Houve, nos tempos da secura das árvores dois anos atrás, incêndios causados simplesmente por autocombustão.

Peguei uma tigela, fui na despensa, que sempre tinha cheiro de mofo ou baratas, sinceramente, não sei porque aquilo, já que limpava de vez em quando. Mas tinha época, em que realmente era impossível dizer, qual o ser que já estaria habitando a tal despensa. Mas a lata com o arroz, daquelas de vinte litros com tampa, estava fechada, enfiava a tigela e trazia derramando pelas bordas; mas devolvia a metade para a lata.

Quando pegava o arroz, via as “escolhas”, o quem vem a ser simplesmente um grão que não foi descascado pela máquina; pensava ligeiramente os tempos de farturas. Meu avô tinha uma fazenda umas sete léguas distantes da cidade; chamada de Fazenda Duvidosa. Até hoje não sei porque a fazenda tem este nome. Mas ela era de causar dúvidas. Tinha-se de tudo, roça de arroz aqui, dois riachos acolá, cheios de traíras, saborosas na brasa, roça de feijão; e era bom um feijão novo com caldo fino, “capitão-de-feijão”... gostoso. Levava azeite de babaçu, que no Maranhão abunda, cheiro-verde picado e, claro, a farinha. Amassava-se tudo na mão, fazendo um bolinho ao comprido; depois ia para a fritura, coisa boa mesmo. Galinha ao molho-pardo..., e às vezes me dava dó do método de matança da distinta. Primeiro vinha a “carreira” pra pegar a penosa, um monte de desmiolados tentando pegar a galinha; sempre umas cenas hilárias, seguidas por uma de terror, pelo menos para o lado da galinha.

    - Oh Ginú, traga logo isso menino! Gritou minha mãe.

    - Tô indo mãe!

Minha mãe pisava nas pernas e ia despenando o pescoço, depois dava umas batidinhas nele até ficar vermelho, depois a facada... o sangue espirrando para dentro de uma tigela, minha mãe com a ponta da faca mexendo a tigela pra misturar com alguma coisa; esse sangue seria usado mais tarde.no molho A galinha se debatia nos seus derradeiros momentos de agonia, ainda abria e fechava o bico, piscava os olhos, secos sem lágrimas... quando não se ia usar o sangue, então a morte vinha por um puxão do pescoço, que apartava as vértebras... quando se jogava a galinha no chão pra terminar de morrer, algumas ainda saiam correndo, com a cabeça deslocada... era uma graça maior para os que assistiam, esta cena. Mas eram somente os derradeiros desejos de uma galinha; sair correndo...

- Tome moço – dizia despejando a meia-tigela numa sacola miúda e esfarrapada que nem quem a carregava.

Naquele dia tinha um alvoroço na cidade, com muita gente chegando da roça, convocados pelo vigário da paróquia, com fama de carismático, para uma procissão descendo do Patronato, no Morro da Saudade, até a Matriz de Nossa Senhora dos Remédios. Tinha um detalhe: essa procissão, as pessoas tinham que dar provas de desprendimento deste mundo, e elevar ao máximo o sentimento de busca da fé, ou seja, seria como um derradeiro pedido a Deus, para que mandasse chuva. Frei Cláudio, tinha avisado, que se todos quisessem ao mesmo tempo, chuva, Deus a mandaria naquele momento de intensa manifestação de fé, então estavam convocados somente os fiéis que se juntariam ao único pedido daquela multidão... chuva!

O dia amanhecera claro e ensolarado e pra não variar, nenhum sinal de nuvem no céu. Como viria a água, justo naquele dia? Mas ninguém conhece as intenções Dele. A tarde seria daquelas dos quarenta e cinco graus costumeiros; um forno.

Ao meio dia, já começara a aglomeração na frente do Patronato, onde funcionava o seminário para meninas, o Santa Catarina Labouré, e onde as freiras já começavam a jactância maternal para àquele povo, sedento de água, e saciando-se de fé, que parecia como uma nuvem invisível, a pairar sobre as cabeças desnudas daquele povo todo; dava dó. Alguns procuravam no céu alguma coisa, mas somente o azul infinito se manifestava. Tinha-se uma bela visão da cidade, de cima daquele morro, que com o nome de Saudade, denotava tanta, naquele dia. O horizonte mostrava-se também límpido e longínquo, deixando a alma sumir junto. Chover naquele dia, somente milagre. Mas a procissão estava marcada para as quatro da tarde; a chuva tinha esquecido daquele compromisso com certeza. Alguns começaram a aparecer com umas pequenas pedras na cabeça, onde, em cima das quais acendiam uma vela, já amolecidas pelo calor. Em pouco tempo, uma pedreira já não seria suficiente, para conter tamanha demanda por pedras.

As duas e meia da tarde, chegou Frei Pio, maranhense robusto de fé e conservadorismo, mas pio na fé e muito querido dos fiéis. Era quem sempre puxava as Aves Maria na igreja Matriz - voz robusta, grave -; depois incorporou a Salve Rainha ao meio-dia, cantada, pois rezada seria uma hora de joelhos, já que a oração pedia este respeito. Conversou com algumas senhoras, que se achegaram dele quando o viram chegando. Era invejável o carisma daquele frade franciscano e o respeito que impunha pela fé aos fiéis. Foi logo passando um sermão naqueles em que, o bafo da cachaça não deixava dúvidas de haviam passado antes, no mercado da Pedra, já que era uma segunda igreja (no sentido de reunir) aquele local para o povo que vinha da roça, mas nada que abalasse a verdadeira fé, era mais hábito mesmo, a fé era real e sincera. Frei Pio sabia disso. Começou então, a passar o dedo pelo seu terço de contas pretas e a rezar com sua voz grave. Parecia um trombone. Ele me contou várias vezes como fazia para manter aquele vozeirão intacto. Limão com mel gargarejado todas as manhãs. O cheiro de vela, deixava nauseabundo qualquer um que não estivesse acostumado a acender velas. As três e meia, apareceu Frei Cláudio, um frade franciscano alemão, de Köln (Colônia), de família rica, porte atlético, barba ligeiramente grisalha, mas de uma sensibilidade para com a pobreza incompreensível.

Com a chegada do Frei, que conduziria a procissão, os que estavam sentados, levantaram-se e os hinos para a Virgem começaram a eclodir, propagando-se em ondas. Interessante esse fenômeno, esse atraso nas ondas de som, deixa impossível uma sincronização em toda a multidão, mas de dentro não se tem essa impressão. Frei Cláudio colocou a estola branca por sobre a camisa de listras azuis, que ganhara de alguma senhora da sociedade, já que a maioria não poderia fazer essa caridade. Os franciscanos ainda mantêm o ensinamento do fundador da Ordem dos Frades Menores, São Francisco, usando o hábito bege nas regiões quentes, mas não é obrigatório. Frei Cláudio era moderno e dispensava o hábito, mas estava banhado pelo suor e, como prometido, as quatro em ponto deu inicio à procissão. Um carro com alto-falantes emprestava coragem aos hinos e ajudava na organização. Começaram a descer o morro, rumo à Matriz. Seria coisa de quatro kilometros, nada difícil, mesmo naquele calor.

A procissão já começava a endireitar-se na avenida principal, quando se ouviu um estrondo, há tanto tempo esquecido daqueles moucos ouvidos. Todos olharam para o céu, mas este continuava como sempre, azulzinho.

Eu tinha ficado no morro, vendo, pois não havia nada para fazer naquele sábado, também não acompanharia a procissão, então fiquei com uns amigos, confabulando asneiras. Foi com medo e susto, que ouvi aquele estrondo. Olhei o horizonte e o susto foi maior! Negro. Uma faixa enorme no horizonte, do lado do nascente, de ponta a ponta, baixa ainda, indicando que estava longe. Um terror tomou conta de mim. Olhei a procissão lá embaixo, que não poderia ver a faixa, pois o morro tirava a visão, e do outro lado, do poente, o sol continuava a castigar. Mas à frente da procissão, Frei Cláudio sentiu o estrondo dentro do coração, e não quis acreditar. Seguiram-se vários outros, e um vento forte trouxe o cheiro característico da chuva, já esquecidos naquelas narinas. Antes da chuva, outra chuva já começava a principiar-se: chuva de lágrimas.

Quem ousaria não acreditar em milagres?

Grossas gotas esparsas, precipitaram-se sobre aquela multidão, que mistificada pelo milagre, chorava e rezava. Em poucos minutos o céu era um azul profundo, cinzento escuro, rapidamente engolindo aquele sol castigador, e uma pesada chuva começou a banhar a todos e trovões saudavam a coragem e a fé daquela gente. Então, Ele fez-se presente. Indescritível alegria. Frei Cláudio, abaixou a cabeça e sentiu um gosto de sal na boca, não era suor desta vez, mas lágrimas. Pela primeira vez presenciava um milagre. Os soluços misturados com lágrimas, era a equânime da fé com o desejo. Os raios rasgavam o céu com tal intensidade, que os pés sentiam as ondas de choque, que se alastravam até o coração. O desejo de todos, era ser atingido por aquele raio, divino, sem sombra de dúvidas. A história se encarregaria de contar aos netos a alegria indescritível daquela gente, talvez como faço agora. Batiam palmas, cantavam, choravam a maioria, abraçavam-se, pulavam, enfim, ninguém conseguia, apesar de todos tentarem, expressar aquela alegria. E a chuva bondosamente, despencava-se em baldes sobre suas cabeças. Em pouco tempo poças d’água serviriam de banheiras, e já não era procissão, mas multidão, pois todos começaram a sair de casa, para banhar-se na fé daqueles que agora começavam a ficar contritos e a soluçar, retomando a procissão. Mas a cidade continuava a sair para o banho divino; algumas crianças pequenas desconheciam aquela manifestação da natureza. Choravam de medo, não de alegria, mas assim como o sol, a chuva vem para todos. Frei Cláudio caminhava de cabeça baixa, já não conseguia falar, mas mantinha os punhos cerrados contra o peito, com um choro já sem lágrimas, de soluços apenas. Tremia, não de frio, mas do ardor daquele milagre. Ficaria conhecido por aquela profecia, desferida com fé, e, agora orgulho; procurava palavras bonitas pela cabeça para fazer um agradecimento, mas Ele, também estava a divertir-se, no seio daquela gente, não ouviria os agradecimentos, então se contentou em deixar para a hora da oração do deitar; talvez lá ao pé da cama, alguma palavra tentasse, mas já tinha certeza que nenhuma língua conteria uma palavra que expressasse aquilo que nem ele saberia como fazer. Concentrou-se em terminar a procissão e a preparar a homilia da missa que se seguiria.

Eu, molhado que nem um pinto, me lambuzava na lama e nem lembrava que os céus continuavam a despencar.

E quem disse que a multidão queria entrar na igreja? Queriam mesmo era ficar na chuva. Alguém foi avisar o frei da vontade coletiva, que então exclamou.

- Que seja missa campal! Ouviu-se um viva, e logo, vivas a Nossa Senhora eram unanimidade.

Incontestável milagre.

Obviamente, minha mãe, católica como era, estava misturada à multidão, contando continhas no seu terço de prata, essas continhas reluziam, de tanto serem contadas e rezadas e esfregadas. Estava ensopada, banhava, lavada, de alma; o talco Pompom, que ela dizia cheirar a bunda de neném, deixava umas listras brancas no pescoço, se escondendo por debaixo daquelas fofas papadas. Ah, que sutileza de mulher. Dividiria até o último caroço de arroz ao meio, se fosse para dividir a fome com outro. Mas nunca tinha precisado fazer isso, apenas pequenos apertos, são as vantagens da vida espartana, nunca falta nada.

Vamos a homilia.

“Irmãos e irmãs... (soluçou) hoje Nosso Senhor mandou um milagre... que todos aqui estamos presenciando. Todos banhados por uma chuva divina, que tanto precisávamos,... nos dar coragem... (soluços)... faremos um marco com as pedras que todos carregaram sobre a cabeça, para registrar o milagre. Todos podem ir para casa, de alma lavada... permaneçam vigilantes até meia-noite, em oração, agradecendo... amanha, as 08h00, rezaremos uma missa de ação de graças. O povo que veio da roça, dirijam-se à Casa Paroquial, para abrigo; tentaremos providenciar um sopão, para diminuir a fome de muitos; pedir jejum, seria demais, mas para os que se sentem bem, façam-no, Ele merece”.

Estava em casa, já com roupa seca, quando minha mãe chegou, ensopada, pois ainda chuviscava e a noite começava a dar seu ar da graça, com uma leve brisa fresca. Minha mãe foi direto pro quarto, dizendo que iria ficar em jejum e não queria ser incomodada. A chuva começou a engrossar e se arrastou noite adentro.

Pela manhã, um cheiro molhado no ar, ah, que perfume agradável; qualquer perfume mais a felicidade, é uma soma incontestável. O céu com grossas nuvens, mostrava um céu há tanto tempo imutável. O sol brincava de esconde-esconde com as nuvens, e a brisa era a supervisora daquela brincadeira infantil. Cheiro de terra molhada; logo as babujas dariam o ar da graça, e o verde explodiria em uma semana.

Minha mãe saiu cedo pra missa dominical, pois disse que rezariam o terço antes da missa e não queria também ficar de pé, pois a igreja estaria superlotada naquela manhã; tanto estava que a missa foi outra vez campal; e vem mais chuva, pois se cansaram as nuvens e sol do esconde-esconde, era de se acreditar que o sol andaria cansado. Minha mãe chegou outra vez ensopada em casa, mas renovada, parecia a felicidade esvoaçada em uma borboleta.

Naquele dia, tive eu mesmo que correr atrás da galinha, pois o molho-pardo seria um almoço e tanto, para comemorar; não assisti a cena da matança, mas a galinha estava uma delícia. Machuquei o joelho, numa manobra esperta da galinha; mas ela deu azar, caí em cima dela.


domingo, 19 de outubro de 2008

Por que não posso editar?

Brincadeira não! A Elza me mata de rir! Mas tem razão, como usuária, ela tem razão. Ela começou a me mostrar na tela do computador uma página escaneada, do qual ela comentava... "poxa, eu sei que é uma página escaneada, sei que não posso editar, mas, olha, não faz o menor sentido! olha pra tela e me diz se não é tudo a mesma coisa, texto! Por que eu não posso editá-la então!? vocês são todos complicados, conhece alguma coisa que leia isso e transforme em texto?". Fiquei encafufado, mas comentei que havia uma tecnologia chamada OCR, que interpretava, por casamento de padrões, e tenta transformar em texto... na maioria das vezes ele consegue. "Eu sei disso, nunca usei mas já li sobre isso, instala depois e me mostra". Não sei por que ela acha que eu entendo de computador, principalmente de Windows; ela já me acha diferente por que eu uso Linux. "Por já conhecer Linux, tem obrigação de saber windows (?!)". Bom, voltando a conversa do texto e todos já entenderam o que eu queria; quero escanear um texto de uma página e sair editando. Vou procurar e, se achar, edito aqui. Ah, a fonte de edição e tamanho tem que ser a mesma da página escaneada! Fui!

terça-feira, 14 de outubro de 2008

É Nascido...

Eram seis horas da tarde; domingo. Pleno verão; mês de janeiro. Depois falo por que sei aquelas horas. Durante o dia tinha chovido bastante e, no sertão do Piauí, uma chuva forte, todos os riachos enchem com uma velocidade impressionante. No resto de tarde, ainda tinha resquícios do temporal; coriscos1 esparsos, céu de escuro profundo no horizonte, nuvens ainda carregadas. Um vento suave entrava pelas frestas dos caibros e telhas, um cheiro gostoso de chuva, de mato molhado. A cada corisco, o chão tremia, a claridade surgia intensamente de todos os lados, como a alumiar bons dias vindouros; de fato. Essa não iria ser uma noite qualquer.

Ele, todo acabrunhado, pois este era o primeiro; nervoso e alegre; alegria nervosa. Coração saltitando na goela; uma “caninha” de vez em quando aliviava, mas já o deixava bêbado. Bêbado de alegria e de cachaça também. Os cafés saiam um atrás do outro; amenizava o álcool e o deixava desperto; e mais nervoso – cafeína. Manter o fogão a lenha aceso, não era tarefa das mais fáceis. Alguns gravetos e uns pedaços de marmeleiro e sabiá "aqueciam-se" amontoados ao redor do fogão; estavam secando. O bule de ferro esmaltado, verde, ficava ao lado da boca da chapa; mantinha o café aquecido. Quando se queria o café, dava uma assoprada na brasa, depois umas abanadas, com um velho abano de palha de carnaúba, com as pontas esgarçadas..., aguardava um pouco... colocava um gravetinho... uma chama aparecia meio desconfiada, mas já ajudava; depois, café quentíssimo. Quando acabava o pó de café, o que aconteceu, era preciso bater uns grãos torrados no pilão. Esses grãos de café, eram torrados com rapadura numa grande panela de ferro. Quando eram retirados da panela, logo endureciam, grudados pelo melaço da rapadura. O "grude" que ficava na panela, jogava-se uma água e, daí era feito um café tão forte, que era conhecido como sangue de peba2.

A casinha era pequena, paredes de adobe, caiada por dentro e por fora. Uma salinha, uns tamboretes, com o tampo de couro cru. O quarto, era menor ainda; havia ao lado do quarto um outro, menor, onde era posto as espigas de milho e uns sacos de feijão com areia; isto evita os bichinhos que adoram feijão cru. Depois era só bater numa urupemba3 e cozinhar.

A cozinha, ficava contígua à sala; móveis na casa? Até o momento, duas redes, uma panela, o tal do bule, umas colheres já meio tortinhas, dois pratos de ferro esmaltado em branco, com as beiradas azuis, e umas lascas de esmalte faltando. Duas canecas de plástico, meio amareladas pelo uso do café - às vezes leite. Um pote de barro numa prateleira, água já decantada – o fundo do pote tinha barro – da água do riacho. O chão da casa, era de barro batido com um cepo; usava-se um surrão4 jogado no chão, e batia-se em cima dele, para socar o barro; antes era salpicada água, para não levantar poeira. Ficava o desenho do surrão no chão; uns losangos. Nas paredes, se se olhasse com cuidado, se percebia uns buraquinhos. Eram casas de maribondos, uns que fazem esse tipo de casa em paredes. Não incomodavam ninguém.

Um quintal com umas galinhas soltas, esgueirando-se nas beiradas da casa, preparando-se para dormir; todas com as penas ainda meio molhadas. Uns piados de pintinhos, escondidos sob as asas de algumas delas. Talvez com frio! Havia um cercadinho coberto com palha, e alguns "capões cevados". Cevados, por que era socado milho cozido goela abaixo, com o dedo, e arrastando goela abaixo com a mão, para não entalar o bicho, até ficar com o papo "caruçudo"5. Engraçado, não lembro de frango com indigestão, mesmo com essa sobrecarga alimentar. Esses capões seriam abatidos, para fazer caldinhos e sopinhas, enquanto de resguardo. A sentina6, era atrás da cerca do quintal mesmo; para limpar as partes, usava-se sabugo de milho. E olha que limpava direitinho! Talvez ficasse um pouco ardido. Quando não havia sabugos, usavam-se as primeiras folhas ao alcance da mão... quando era urtiga..., danação!

Zé saiu para fazer um cigarrinho de palha. Pegou o rolo de fumo de corda, foi até o quartinho, escolheu uma palha da espiga de milho, foi ao alforje de couro e procurou a faquinha já carcomida de tanto ser amolada, arrastou o banquinho para fora da casa e começou a cortar em tiras bem fininhas o fumo, aparando com uma mão; depois macerou e enrolou na palha de milho. Foi ao fogão, pegou um tição, acendeu o cigarrinho e deu gostosas tragadas. Voltou a sentar no tamborete do lado de fora. A noite já se achegava. Pensava. Amanhã vai ser um dia diferente... Um relâmpago! Um grito vindo de dentro da casa, do quarto.

- Zé Adauto!

- Que foi Raimunda?


- Levei um susto com o "truvão"7 e senti uma fisgada forte no "pé da barriga" - Era agora. Agora a coisa começava para valer. Estavam somente os dois e quando ele chegou de tarde todo encharcado, a mulher já havia alertado sobre essas "fisgadas".


- Que faço Raimunda?


- Chama a "Madim Rosinha" - Madrinha Rozinha era uma senhora rechonchuda, tia do Zé. Criava-o desde os 12 anos; era filho de uma irmã sua. Correu a sua casa, ficava quase do lado. Encontrou-a, sentada, jantando.


- Padim Bubú, "Madim" Rozinha a Raimunda começou a sentir "as dor do parto". Vamos lá que ela ficou sozinha.

Lentamente, o velho pegou a corrente da qual pendia um relógio de bolso; de prata. Consultou as horas e foi anotar no caderninho capa de couro, onde tinha já anotado, um monte desses eventos.

A dita casinha ficava a umas 100 "braçadas" da pequena sede da fazenda. Quando o Zé veio para a fazenda, foi imediatamente adotado como um filho. Recebia todas as atenções e era cercado de mimos. Dona Rozinha e seu Chico Salles, não tiveram filhos. Então eles já esperavam o "neto" com a igual ansiedade da jovem futura mãe.

Entraram os dois apressados na casinha. Já foram ouvindo um outro grito lá dentro. Agora começaria uma verdadeira maratona para o Zé.

- Zé, vai correndo chamar a "cumade" Curica! – gritou dona Rozinha.

- Comadre Curica, era o apelido de dona Antônia, parteira da região. Todos os moleques e molecões a chamavam de "cumade Antonha".

Zé pensou nas duas léguas8 de ida e nas duas de volta. Dona Antônia morava na localidade de Lagoa da Descoberta e, fora os partos que fazia, vivia de fazer chapéus de palha. Fazia uns chapéus diferentes, pesados, pois a palha era trançada e depois dobrada, fazendo umas escamas; bonito chapéu.

Selou a égua numa correria e logo já estava cavalgando. Não se esquecera da "peixeira"9 já enfiada na luva da cela; nunca se sabe nestas paragens a noite. Ele não sabia o que o aguardava a frente. Começou a chover forte novamente e a trovejar; aqueles relâmpagos clareavam tudo ao redor; Tinha medo dos raios, pois vira um caindo no oitão10 da casa, ao lado da sua rede, quando era menino. Foi um corte na alma que ainda não cicatrizara.

A sede da fazenda ficava num morrete, com dois riachos, um de cada lado. Os riachos não eram tão pertos da casa... Um com nome esquisito, Pinguela e o outro Varjota. Este, o Zé teria que atravessar agora. Quando começou a descer, na escuridão da noite, ouviu o farfalhar da água pelas patas da égua. Pensou. "Vixe Maria, a Varjota tá na vazante". Ou seja, tem um riacho caudaloso para atravessar pela frente. Avançou devagar e pensando nas quantas vezes que teve de atravessar os "burregos"11 na cabeça, quando as ovelhas ficavam presas do outro lado; se não buscasse os filhotes, eles seriam arrastados pela correnteza, pois as danadas das ovelhas cismavam em atravessar a nado o riacho. Uma vez ou outra, uma se afogava.

Na vazante, ficava uns dois palmos de água na várzea até chegar ao riacho, era um espelho aquático ao luar, quando tinha; agora era como ver a égua meter as patas no breu. Pensou em como convencer a égua a atravessar o riacho; sabia que o bicho ia refugar de primeira, mas com insistência, ela iria nadar até o outro lado. Pior é que depois de atravessar, teria que ir no lombo da égua, no osso, como se dizia, pois a sela, para não encharcar, ficaria num galho de árvore – tinha umas cascavéis, que adoravam ficar no marmeleiro, quando no chão só tinha água -, e na volta teria que pegar essa sela com cuidado. Cascavéis! Lembrou que uma vez um vaqueiro amigo dele, tinha feito o mesmo, justamente para atravessar a Varjota, e quando voltou, pegou a sela com pressa e jogou no cavalo. Quando chegou em casa e foi pendurar a sela, uma cascavel caiu no chão, já morta, esmagada na luva da sela. Foi sorte. Uma "mordida" na virilha é fatal! Virou lenda.

Iria levar consigo, somente a esteira de palha, pois ir no "osso", era contar com assaduras na certa depois. Tirou a roupa, ficando somente de calção de algodão - que ele gostava "de criar o bicho meio solto!". Fez uma "rudia"12 com as roupas e prendeu na cabeça, passando com o cinto pelo queixo. Tudo pronto, deu umas palmadas na égua, a bicha deu umas espirradas, mas começou a entrar na água e logo estava nadando pro outro lado. A correnteza a arrastava um pouco, mas ele a esperou "dar pé" do outro lado; viu o vulto chegar do outro lado e o barulho da égua sacudindo o pelo e espirrando – éguas espirram!. Foi um pouco mais arriba pra tirar a conrrenteza e foi entrando, até a água chegar no peito, então começou a nadar "em pé". Zé se gabava dessa sua habilidade;,nadar em pé. Aquela travessia, quanto mais caudaloso o riacho, mais fascinante era.

Montou na égua e saiu no galope no "osso". Na travessia, o "habilidoso" Zé, deixou escapar a esteira. Depois a encontrou com o remanso13 do riacho; atravessou montado, com a água no peito da égua. Apercebeu-se também, que com todo aquele furdunço, os efeitos da cachaça, tinham passado... ao longe já avistava umas luzes de candeeiro, frestando as portas e janelas; era a Vereda. Quantas festas já tinha vindo neste lugar.

Zé Adauto tinha um conjunto de forró. João Tetô no pandeiro, Corinto no surdo, Antonio Marcelino no triângulo e João Simão no bandolim. Já eram até conhecidos na região. Forró no Córrego, Saco do Elpídio, Sertão-de-dentro, Pega-Bem, Frexeiras, Cupins, Lagoa da descoberta, Boqueirão, Bangüê, ...

- Zé, aonde "tu rái hôme"? – Perguntou um amigo, que estava ao peitoril14.

- Vou buscar a "cumade Antonha".

- Tua “muié rái discansar"15? – empertigou o outro.

- Tá c'uas dores... vou indo. Zé sabia que ainda tinha um rio a frente. O rio Vargem Grande. Esse não dava para atravessar a nado com certeza; tinha uma correnteza muito forte. Tinha que deixar a égua do lado de cá. Ia atravessar uma pinguela; duas toras de árvores, fixadas com tábuas. Acontecia de, algumas vezes, o rio levar a tal da pinguela. Hoje bem poderia ser um daqueles, né?

A pinguela ainda estava lá, mas com a água já passando por cima. Tinha que ser rápido. Amarrou célere a égua num arbusto; pegou a calça e camisa que tinha servido também de esteira no lombo da égua; toda engelhada. Mas era noite e aqueles detalhes pouco importava pro Zé agora. Vestiu a roupa, arregaçou as calças e cruzou a pinguela. Mais na frente, já num ponto alto da estrada, divisou na escuridão o tênue espelho d'água do Açude do Governo. Governo, por que fora construído pelos militares. Quantos bodós já tinha pegado nesse açude. Metia as mãos numas locas dentro d’água, quando qualquer coisa se movesse, se tentava pegar. O muçum era fácil diferenciar; era literalmente uma cobra lisa! Dava uma sensação esquisita, ele escapando por entre os dedos... mas o bodó era áspero; mas era esperto também! Bodó assado, humm!

Dona Rozinha estava assustada, nunca havia presenciado um parto. Já tinha ouvido os gritos, mas nunca presenciara. Desta vez corria o risco de fazer o parto. Era o que a preocupava. D. Maria Cruz entrou ofegante e disse que o "cumpade" Bubú a tinha ido avisar. Dona Rozinha, suspirou fundo... que alívio! Mas acontece que, D. Maria Cruz não era parteira e, começou a fazer perguntas para a comadre Rozinha; E agora? Bom, pelo menos agora ela não estava sozinha. Raimunda, dava gritos lancinantes! De repente, D. Maria Cruz viu uma mancha debaixo da rede da Raimunda. Pegou a lamparina e foi verificar. Era sangue! O Sangue as gelou. Mas o instante a enganou; era a bolsa d’água que havia se rompido.

- O que é? – inquiriu Dona Rozinha.

- Sangue.

- Sangue? Tá nascendo! Traga aquele cepo! – O tal cepo era um toco de madeira serrada, como uma cadeira baixinha. Forrou com algumas dobras de lençol, e tiraram a Raimunda da rede. Uma luta! Raimunda era ela toda uma barriga – esse moleque vai ser grande; pensava. Com dificuldades, Raimunda sentou no cepo e abriu as pernas, para facilitar a passagem; forraram o chão com mais alguns lençóis; D. Maria Cruz correu para pegar a bacia de alumínio na cozinha; reluzia, de tanto zelo de Raimunda pela bacia. O primeiro alvo de D. Maria Cruz, foram as garrafas de pinga do Zé. Ele havia comprado uma dúzia; para o mijo do menino, dizia. Pegou uma garrafa, abriu com um abridor de garrafa feito de madeira e um parafuso de cabeça grande na ponta; aquilo agarrava na tampa da garrafa e sacava-a. Colocou uma meia garrafa na bacia e começou a limpar a tesoura, outrora usada para cortar cabelo também. A tesoura seria usada para cortar o cordão umbilical. Dona Rozinha pegou alguns capuchos de algodão, descaroçou-os . Seria usado para fazer um fio grosso, para amarrar no umbigo. Nas folgas das contrações, Raimunda pensava no "meu bibelô"; pensava nas papinhas de goma, de puba, que iria fazer – e enfiar na boca do "bibelô" com um dedo...

Zé chegava à casa da comadre Antônia; ela já havia acordado, pois o Zé de longe já gritara: Oh de casa! É parto! Era perigoso chegar de noite nessas paragens; ao menor ruído, eles pegam numas espingardas "de ouvido", e ficam na espreita. Então é melhor ir avisando de longe.

- Quem é? Zé Adauto?... – Comadre Antônia era conhecida da família, pois sua filha Francisca, morava com Dona Rozinha desde pequena.

- Sou eu "cumade" Antônia, o Zé, da tia Rozinha.

- Que foi, tá nascendo teu "minino"?

- É!... saí de lá com a Raimunda com as dores; e já tem mais de uma hora. Demorei muito porque a Varjota tá "vazando"...

- Vixe Maria, tomar banho nesta hora! Também, com esse toró.

- E tem um remanso grande também; mas a senhora passa na égua e eu vou andando... ou nadando.

- E no riacho?

- Eu lhe atravesso segurando o braço.

- Olha lá, hein Zé! Então vamos.

Comadre Antônia era muito querida na região pela sua simpatia, mas mais, pela sua fama de benzedeira. Qualquer íngua... chama a comadre Antônia. Ela chegava com uns galhinhos de não sei o quê, metia numa baciazinha de água, respingava no enfermo... no outro dia tava bom! Contavam ainda, que um dia, dormindo na rede caiu do teto – de palha -, um rolo de cascavéis – uma ninhada! No outro dia quando percebeu algo esquisito debaixo das costelas, pensou que fosse o lençol dobrado, mas...! Não acreditava no que os seus olhos viam! Chamou pelo marido; este verificou as costas e costelas de comadre Antônia; estavam cobertas de picadas das cascaveizinhas! Ela não sentiu uma dor na unha! Desde esse dia, contam, se uma cobra cruzar com ela pelo caminho, basta um olhar e, a cobra morre na hora! Virou lenda!

O intervalo entre as dores, começava a diminuir, quando comadre Antônia entrou já toda despachada, tomando conta da situação. A roupa ainda toda ensopada. De pronto, elogiou a habilidade do nado do Zé; aquilo massageou o tão modesto ego do Zé...

Comadre Antônia fez umas perguntas para a Raimunda, para as outras comadres; perguntou pela tesoura, pelo cordão de algodão que deve ser feito na hora. Tudo estava arrumado; começou a dar umas defumadas na casa, queimando uma casca de uma árvore, que solta uma fumaça cheirosa; ficou dias, aquele cheirinho. E nada... nada de menino. Isso já era por volta da meia-noite quando comadre Antônia chamou o Zé.

- Vá ao Pé-de-Serra, no Lauro, e vê se ele tem Parteína... e traga também os aparelhos.

Comadre Antônia começara a se preocupar, pois não se via dilatação nenhuma; a injeção iria ajudar nas contrações, somente. Pensou em passar a gillete; um pequeno corte a sangue frio; muito rápido, na parte de baixo. Lavou bem a lâmina e foi à prática; fez uma incisão tão rápida, que nem Raimunda sentiu; provavelmente porque as outras dores, seriam maiores. Começou a sangrar. Era sinal de que o menino ia começar a sair. E o Zé desta vez foi rápido, pois logo chegou com a injeção e as seringas, com suas agulhas grossas; ferveu tudo rapidamente e, comadre Antônia mesmo aplicou. Agora Raimunda sentiu e resmungou.

- Já não basta a dor do parto? – E Raimunda se esperneava de dor. Dona Rozinha e Dona Maria Cruz estavam hipnotizadas com tudo! Não falavam uma palavra! Suavam somente!

O Zé na sala, na cozinha, no quartinho ao lado, ouvia tudo calado; só pensava. Amanhã, se Deus quiser, vai ter forró o dia todo; foi pegar a sanfona e sentou-se num tamborete, do lado de fora da casa; tocou Asa Branca majestosamente; arrastado... lento... como saboreando uma sensação única. Afinal o primeiro filho só nasce uma vez!

Pensava que horas seriam; mas ninguém ali tinha relógio; só "padim" Bubú. Mas não iria lá só para perguntar as horas; olhou pra cima; mas tudo escuro, não tinha estrelas, só nuvens negras. Mas os galos já começavam a cantar; era em torno das quatro da manhã.

E nada. Já tinham pedido para ele parar de tocar, pois a Raimunda se incomodou com o barulho. Perguntou para a comadre Antônia.

- “Cumade”, vai demorar ainda pra nascer?

- Tá tudo difícil; o menino ainda nem apontou a cabeça...!

Dona Rozinha revezava com Dona Maria Cruz, sustentando a Raimunda por trás. Esse trabalho cansava... Zé voltou pro tamborete do lado de fora; o mundo começava a sair de um escuro negro para um azul escuro... principiava a aurora. De repente!

- A cabeça, a cabeça! Começou a apontar a cabeça! Raimunda já quase desmaiando de tanto esforço durante toda a noite; banhada de suor, garganta seca, horas de incertezas, angústias... o medo enfim.

- Faça mais força! – gritava comadre Antônia. Mas de onde tirar forças? Foram exauridas durante a noite em claro. Dona Rozinha e D. Maria Cruz tinha saído do estado hipnótico e entravam agora num estado de espanto contínuo de queixo caído e tudo.

- Saiu a cabeça... agora vem! Saiu! – E no chão de barro batido, coberto com lençóis, já ensangüentados, se acomodou o primeiro membro direto da família do Zé. Levou a primeira palmada, de muitas que ainda levaria na vida. O choro saiu com vontade; começou a respirar!

- É homem! - Zé ouviu, olhou o céu novamente, já clareava e galos já haviam parado de cantar; eram cinco e tanto... aquele chorinho lhe enchia o coração de alegria, uma alegria diferente, um filho macho! Correu pra dentro e pegou um foguete e foi soltar. Era costume avisar quando um nascia um filho, soltando um foguete de um tiro para menino homem e, dois foguetes, mulher.

O velho, já estava acordado - não dormira direito – ouviu o primeiro tiro do foguete... esperou um segundo... nada; pegou o relógio de bolso, consultou as horas... cinco horas da manhã. Foi ao caderninho e anotou: “Nasceu hoje as cinco horas da manhã, dia 30 de janeiro de 1966 o primeiro filho de José Adauto da Silva. Nasceu com saúde; não sei como se chamará.” Foram dez horas de parto, sofrimento... pensou. Depois anotaria o nome do “netinho”. Já tinha um em mente...

- Zé, vem ver teu filho! – chamou comadre Antônia. – Zé entrou desconfiado, olhou primeiro para a Raimunda, e teve a petulante idéia de perguntar...

- Como tá tu “muié”? – Raimunda era só sorrisos, doloridos sorrisos, mas sorria.

- Estou melhor, doeu muito... também, olha o tamanho do bichão! – Zé via nas mãos de comadre Antônia, o filho; seu filho.

- Ei rapaz! Olha eu aqui! – O moleque desabou a chorar.

Raimunda disse que queria dormir um pouco, enquanto todos iam fazer a limpeza de tudo. O moleque foi colocado numa rede-de-meio de loninha listrada, azul com branco, com o fundo já remendado. As cabeceiras da rede – punhos – eram de uma rede velha; daqui a alguns dias estaria com o fundo todo amarelado de tantas mijadas... uma teoria minha, diz que esse ângulo de quase 45 graus da rede, influencie no formato da cabeça da criança, aparecendo aí o que chamamos de cabeça chata; tão típica nos nordestinos.

Dona Carlota chegou, talvez umas nove horas da manhã, vinha ver o neto; não era o primeiro. Ela já tinha para mais de uma dezena de netos. Veio dar aquela ajuda que somente a mãe pode dispensar, além do conforto sentimental que a filha sente, vendo a presença e tendo os cuidados da mãe. Agora teria uns trintas dias de resguardo da filha, que não podia se levantar pra nada, somente para as necessidades, devidamente feitas num penico, dentro do quarto. Comia uma comidinha sem sal, com pouca gordura; geralmente dos tais capões; repouso absoluto, até o banho era dentro da tal bacia, com água morna; o umbigo do menino era limpo com “cachaça pura”, que era aquela primeira cachaça que sai do alambique; álcool puro! O sogro do Zé, tinha um alambique artesanal; mas o Zé tinha que comprar.

Não demorou muito, chegou a turma do conjunto, cada qual com seu instrumento debaixo do braço; uns vieram a pé. Disseram que os riachos estavam na vazante, ou seja, estão baixando. Zé tinha pedido pra sua Tia Rozinha, matar dois capões. Esses capões, além de serem “socados” com milho cozido, também eram “capados”. Sim! Capados! Cortava-se o frangote abaixo da cloaca com uma faquinha bem amolada; metiam-se dois dedos e arrancavam os dois testículos, localizados no espinhaço do bicho, tendo que atravessar o frango inteiro até no espinhaço. Os testículos são tamanhos de azeitonas, das grandes. Para fechar o buraco no frango, costura com linha normal de costurar camisas e vai dando uns nozinhos; tudo a sangue frio. Depois para cicatrizar, cinza! Alguns não resistiam à tamanha tortura... e condenados à morte de qualquer maneira. João Tetô já estava impaciente com o mijo do menino que não saia.

- Zé, cadê a danada?

- Vou pegar. – e em poucos minutos, somente no afinamento dos instrumentos, a garrafinha foi esvaziada; a vizinhança começou a chegar. Não pararam mais de tocar até o anoitecer. A tarde o sol deu o ar da graça, e o finalzinho do dia era realmente fascinante, com as nuvens rajadas de vermelho, roxo, amarelo, avermelhado. Os homens, esses, todos bêbados... de alegria. Finalmente, Zé lembrou de uma coisa, esquecera a sela no galho lá no riacho. Na correria e,comadre Antônia dizendo que ia o resto a pé... veio puxando a égua... e a sela ficou lá! Que as cascavéis durmam mais uma noite sossegadas!

- O velho voltava ao caderninho de anotações e anotava: “É nascido... 30 de janeiro de 1966, primeiro filho de José Adauto da Silva, com o nome de Cláudio José Cardozo da Silva, em homenagem ao meu grande amigo Claudionor Fontelenes”.



Cláudio Cardozo, Rio de Janeiro, 23 de março de 2003.

Dedico ao “Seu” Zé Adauto, meu pai, in memoriam, e dona Raimunda, minha mãe.

PS. quando escrevi esse conto, meu pai ainda era vivo (faleceu a quatro dias atrás) e não tive oportunidade de mostrar à ele o conto finalizado, afinal foi ele mesmo quem fez a narrativa.


1 Relâmpagos, raios, trovões.

2 Tatu-bola

3 Peneira de palha

4 Saco de palha de carnaúba, usado para guardar ou transportar cereais

5 em caroços.

6 Latrina

7 Trovões

8 Medida itinerária; equivalente a cerca de seis quilômetros.

9 Faca.

10 Parede lateral de uma casa

11 Cordeiro de um ano ou menos

12 Rodilha; rosca de panos para assentar fardos que se transportam na cabeça.

13 Água de rio estagnada, sem movimento sensível.

14 Parapeito.

15 Dar à luz.

Mendigos e Miséria

Fico pensando... Friedrich Nietchze disse em "O Viajante e sua Sombra" que, se os mendigos dependessem da compaixão, já estariam todos mortos de fome, e, completava, que a maior dispensadora de esmolas era a covardia... fico intrigado quando se quer acabar com a miséria, subsidiando-a através de subterfúgios que conhecemos bem; isso não é aliviar a dor alheia, é prolongá-la, é dar esperança de algo que não vem, é tentar deixar a caixa de Pandora fechada. É falta de compaixão e covardia das brabas!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Pregador

Ainda era escuro, José João (!?), estava ao espelho do banheiro, arregalando os olhos com os dedos. Estavam horríveis.
Êita Janjão – era como ele chamava a si próprio -, hoje vai ser brabo!
De fato era verdade. A noite foi calorosa nos dois sentidos da palavra – Dona Matilde às vezes caprichava. Mas o pior era o calor, o calor mesmo... (Ufa!) Tinha tomado três banhos depois que chegou da pregação. Pregação?! Sim, isso mesmo caro leitor e leitora, Janjão é pregador...
Meteu os dedos nos cabelos desgrenhados, puxou para trás, conferiu se a calvície havia aumentado, deu umas fungadas... – será que ele vai meter o dedo no nariz? – colocou a mão em concha na torneira e jogou água no rosto. Isso o fazia acordar! Olhou para cima e puxou a lâmpada para perto de si. Janjão já havia providenciado dois ganchos dentro do banheiro, para pendurar a tal da lâmpada e ontem a noite colocou um terceiro, junto ao espelho. Era uma lâmpada nômade, portanto. A desculpa para Dona Matilde, foi que a vista tava piorando. Mas ficou bom, para cultivar o narcisismo, conferir a cabeleira e também para fazer a barba. Agora já ajudava também para escovar os dentes. Nem sequer tinha interruptor. Tinha que dar "umas rodadas" na lâmpada, para acendê-la. A parte de trás do soquete, branco, era isolado com fita-isolante, mas descuidos acontecem. Dona Matilde que o diga.
O tal do espelho, nem mereceria este nome. Um pedaço de vidro do que algum dia já fora espelho. Foi um que quebrou no banheiro da igreja e, como iam jogar fora,... "pidi pro pastor"; quando veio ainda refletia, agora o mofo já o inutilizava por trás... e Janjão tentava desembaçar pela frente.
Meteu a pasta de dente na escova, tirou a ponte de quatro dentes da frente e meteu a escova na bichinha. Depois a equilibrou entre o gancho e os fios da lâmpada. Era para secar. De hoje em diante, aquele gancho também teria essa segunda serventia. Lugar cativo. Só pra não passar em branco, ele sempre fazia aquela gracinha de meter a língua na vaga dos quatro dentes; e fazia aqueles barulhinhos de pessoa abestalhada, só faltava os óculos... que ele usava. Dona Matilde apareceu.
- Vai pra Carioca hoje, Zé João?
- Vou passar primeiro na casa do pastor; mas talvez eu vá pra cidade mesmo.
- Num sei como você agüenta, ficar naquele sol, de gravata. E olha que antigamente tu até usava terno no verão.
- O pior é a garganta seca; às vezes passa um irmão por lá e paga uma água. O que a gente ganha, não dá pra ficar comprando água toda vez que dá sede.
Era de dar dó mesmo. A pregação era uma tarefa de evangelização. Janjão ficava a interpelar pelas brechas do olhar os incautos passantes e, lhes proferia profecias, salmos, apocalipse, e por aí vai... isso remonta os primeiros apóstolos (do Lat. Apostolu), aqueles que foram os primeiros 12 discípulos de Jesus e seus mensageiros imediatos. Logo depois da Ascensão este título foi usado por aqueles que espalhavam a Boa Nova, em geral dirigidos por um dos discípulos. Mas, durante os primeiro anos da Igreja este título foi dado também aos missionários que tinham a tarefa de espalhar a fé e a doutrina de Cristo em certa região ou povo. O Janjão. Um Apóstolo. Região: Largo da Carioca; Povo: povo? Palavra esquisita. O povo era os passantes. Alguns irmãos são contratados para ficar assistindo à pregação. Faz público e aumenta o interesse do "povo" passante.
- Aleluia!
- Aleluia! – Respondia o irmão "contratado".
Vez por outra, Janjão sacava o lenço do bolso já úmido de tanto suor, e passava na testa. Muitas vezes esquecendo de recolocá-lo no bolso, ficava agitando ameaçadoramente o pobre lencinho contra o povo. Dona Matilde sempre que podia dava um pulinho para ver o marido em "atuação". Babava, pois o Janjão se esforçava ao máximo, quando ela aparecia. Mesmo que naquele momento não tivesse nenhum outro ouvinte. Jogava palavras ao ar, verborragia, e Dona Matilde toda contrita. Sol escaldante; pingo do meio-dia. Janjão continuava a jorrar em palavras de salvação; palavras Dele, dita pela boca do pregador; um Apóstolo. E o suor a jorrar pela testa...
Pregar ou Evangelizar (do Lat. evangelizare). Janjão se fazia esta pergunta vez por outra. Pregar é um sermão, sendo Evangelizar preconizar uma idéia ou doutrina; pregar, portanto. Janjão se remoia com estes conceitos; isso maltratava o coitado.
Mas o maltratava mais ainda era a concorrência, por vezes desleal, de alguns outros que tentavam como ele, roubar a atenção de uma miríade inocente; como pode, eles preferirem o som daquele pandeiro e aquelas palavras desconexas? Pois é meu caro Janjão, ainda se chama de arte o repente, essa manifestação nordestina. Muitas vezes se perguntou, se pregando fazendo aqueles arremedos e sacolejando também um pandeiro, atrairia gente para fazer aquela "roda" toda, e, eles ainda "sacudiam" algumas migalhas àqueles verborrágicos. Lembrou que algumas vezes, diante daquele espelho, tentou fazer rima e pregação, e chegou à razão óbvia de que rima e sermão, mais enrola do que convence; são propósitos diferentes. Bem que seria interessante, mas os "ensaios" o fizeram desistir. Não insistiria mais naquilo, mas pelo menos fez dona Matilde se contorcer de rir.
Os ponteiros de seu velho relógio Orient, carcomido pelo sal do suor, se recusavam a encostar-se à 10h, contribuindo para a vertigem causada pela falta de ar, que às vezes provocava a exaltação da pregação. O largo fervilhava, e agora seus alvos aumentavam, sua jugular saltava do pescoço, para a voz ecoar o mais longe possível e fazer-se ouvir; era isso que o deixava rouco. Até se perguntava se o Senhor estava a tirar-lhe a voz!
Pior era presenciar a Guarda Municipal, deitar o cacete no lombo dos camelôs que insistiam em vender "suas vidas", disfarçadas em bugigangas de procedência duvidosa. Não era aquilo aceitável na sua curta razão, fazendo com que a divina inspiração o acometesse de palavras acalentadoras, àqueles que agora o lombo ardia ou se contorciam encostados às grades do Convento de Santo Antônio. Nunca conseguia entender o que faziam aquelas pessoas se arriscarem tanto, para tão pouco, ou tão muito, se se pensar que a vida dependia daquilo, daquele lucro irrisório, que nem existia sequer; apenas lampejos ilusórios da curta permanência de algum dinheiro no bolso, e a certeza de amanhã levar outras bordoadas se insistisse em aparecer no outro dia. Janjão não vendia bugigangas, doava palavras ao vento, sopradas por uma garganta convicta da salvação pela palavra.
Procurava com o olhar os irmãos "contratados" e os achava sentados à sombra, exaustos, não se sabe se por ficar em pé ou por ouvir Janjão. O português que Janjão praticava não merece elogios nem tão pouco repreensão, mas invejava a convicção dada a cada palavra, dom de poucos; e aquela Bíblia que vagava de uma mão à outra, já se desmanchava de tanto ser aberta em capítulos e versículos aleatórios, algumas páginas completamente engelhadas por grandes gotas de suor que para lá se foram, com o firme propósito de as palavras renovarem, na forma de outra Bíblia.
Ah, 12h!
Quantas indecisões impuseram essas horas que indicam o meio-dia! Hora de alvoroço, as formigas saem, destrambelhadas, a procurar comida, causando uma convulsão àqueles que tem algo a mostrar, vender, ou mesmo doar palavras. Mas, terminou por se convencer que somente na volta, será possível fisgá-los, possivelmente, a atenção. Na ida, barriga vazia, na volta satisfação de barriga cheia; também indica o inicio da última batalha do dia. Foi-se ao encontro dos irmãos; um sopro divino baforou-lhe o corpo, na forma de uma brisa suave, que ajudada agora pela sombra, foi como um sopro de vida nova para o Janjão, que se sentou soltando um longo suspiro, de alívio, não se sabe de quê. Especula-se que seja o próprio cansaço, já cansado de cansar o desgraçado.
Janjão não parece entender que o dom salvífico é um livre arbítrio, é a graça de graça, basta decidir e pegá-la; ele já decidiu e tem a salvação, algo que achou por si, sem se dar conta, dado por Ele, que ele não pode distribuir. Salvação tem que se querer.

obs.: minha homenagem a esses incansáveis pregadores de ruas.

Foi um Curso... e acaba num avião.

O que fazer quando se está assistindo a uma palestra depois do almoço? Pior, a palestra não tem muita importância, porque eu já conheço o assunto. Manter os olhos abertos é uma tristeza; o sono me embala e, parece que capricha, esse Morfeu1.

Fui ao banheiro e lavei os olhos com água gelada, porque aqui no Canadá tudo é gelado

O sujeito fala; eu as vezes dou uma olhada nos slides. Ele, um cara "entroncado", esforça-se para explicar um assunto "batido"... opa! Meus olhos fecharam! quanto tempo ficaram abertos? Não babei ao menos, mas ela, a baba, já me chegava aos beiços.

Tomar um "chafé" não agüento mais. Eles, adoram sorver uma caneca cheia dessa coisa que eles insistem em chamar de café. Todos aqui bebem café com bastante água quente; é um café fraquinho. Olho em volta e todos estão esforçando-se para manter os olhos abertos também; todos se entreolham, impressionante, a curiosidade humana!

Bom, então, resolvi escrever uma crônica, ou melhor, cronicazinha. Talvez a Menina se interesse... Florbela Espanca... Pensando bem, acho que ela vai achar divertido; vou ganhar um sorriso. Bem sei que não vou terminar isto enquanto estiver aqui; quando voltar ao Brasil, ... quem sabe?! Mas vou tentar e, aproveitar para fazer minhas impressões deste povo; já fiz "caquinha"2 ontem. Pronto, terminou a apresentação; palmas. Mas tem mais uma...

Ontem foi um dia agradável, um passeio de barco pelo "Rideau Canal"3 – uma cena bucólica; talvez igual àqueles passeios pelo Sena. Uma chuva fria e o frio atrapalharam um pouco a festa; a Menina iria gostar, teria idéia de como a iria aquecê-la aqui. Acha-se um jeito, mas pensa-se logo naqueles apertos; juntinhos, um sentido o coração do outro bater lentamente, feliz... só o "calor" não poderia aumentar... uns beijinhos pode!

Fabio Fattori, um cara da Itália, convidou-me para uma saideira, mas o bar do hotel estava fechado, e em Kanata, onde estou hospedado, barzinho é uma coisa rara, mas a sorte estava do meu lado.

Hoje acordei um tanto cansado, tomei um remedinho para diminuir a ansiedade, mas dá um sono, e, já começo a ficar preocupado com a tarde. Ainda temos um longo dia pela frente.

Lavei o rosto – virou hábito – e estou tomando uma caneca de "chafé" – virou hábito -; melhora, mas o que salva é escrever essa crônica e saber que a Menina vai ler, e... ganhar com certeza, vários sorrisos; acanhados, talvez... não! Tímidos! Mas really true.

O palestrante agora é até um amigo de longa data. Disse-me que tem uma filha de poucos dias e ainda está na fase da coruja, ou talvez não acreditando de que foi capaz de tamanha façanha. Não sei porque lembrei agora de Cathy4; talvez de alguma maneira a Menina – observe agora que menina virou substantivo – tenha algo a ver com isso. Fui embora do Canadá.

Entrei numa livraria para passar o tempo e fui procurar algum pocket book5, mas estava muito caro, pedi então a ajuda da atendente. sobre biografias. Tinha ficado interessado por uma de Saladino

Era de uma beleza encantadora (todo mundo diz isso), cabelos castanhos e olhos azuis e pele alva como talco. Todos sorrisos, perguntou no que poderia ajudar (sem ironia, após nove dias "sem", uma pergunta dessas cai numa parte do cérebro totalmente inescrupulosa). Usava uma blusa de mangas lilás, um pouco folgada; percebi no ato que não usava sutiens. Aquela visão repercutiu; imagine. Respondi o que estava a procurar e, ela, imediatamente me levou à seção de biografias. Um brasileiro que ande atrás, digo, logo atrás, de uma mulher e não olhar para a bunda dela... tem algo errado! Não sou santo, nem tampouco tenho pretensões; cravei-lhe os olhos e fiz conjecturas (quando se é canalha, acha-se palavras bonitas para tudo!). Realmente fora dos padrões americanos. Quando paramos na seção, enfiei-lhes novamente os olhos, sem pudor, nos seios dela. Ela percebeu, e, meus esforços foram inúteis para tentar desviar o olhar; meu cérebro não deixava. Agora claramente ela percebeu.

Um frio na espinha e uma sensação de pavor, inundou-me instantaneamente. Por um lapso de tempo, imaginei um monte de coisas e, fiquei estático. Fui encarado. Sua expressão era normal, cordial, como antes; imediatamente toda sensação ruim, desapareceu. Um sorriso meigo; um perdão... um querer, um pseudo consentimento; eu poderia partilhar aquele bem. Uma empatia enorme dela e um presente divino.

Ela abaixou-se para pegar um livro, que parecia ser de Saladino. Não! Isso não! Isso não pode estar acontecendo, inacreditável o presente divino que acabou de chegar! Foi melhor que a encomenda.

Naquela penumbra do interior da blusa, brotava um contraste branco, perfeitamente distinguível e, fixando mais, o branco esmaeceu-se em cores, e eles a mim foram revelados, como um presente dado a uns poucos.

Ela voltou-se para mim e, com o semblante, disse-me que tudo aquilo fora de sua percepção; levantou-se e tudo desapareceu, mas aquele momento ficou gravado para a eternidade. Sem consolo algum, fui-me. Apenas disse um "obrigado!", e, um sorriso expressivo, desapontado talvez, foi deixado lá. É hora de procurar o portão de embarque; desde que entrei na livraria, eu estava em aeroporto de JFK, NY.

Chegando ao portão de embarque fui ao telefone e deparei-me com uma confusa figura de mulher, com gestos rápidos e expressão nervosa, agitada. Hoje é meu dia, pensei. Ela olhava a todos em volta, com a mesma expressão; um misto de ansiedade e medo, e a todos que a miravam, sapecava um sorriso maroto. Hoje o dia parece uma mentira, que não sei contar. Olhos limpidamente azuis, transparentes. Cabelos em pequenos cachos loiros-castanhos. Fui-me.

Depois de enrolar o tempo, terminei sendo um dos últimos a embarcar e, isso se devia ao fato de eu ter "merecido" uma poltrona no meio – detesto, prefiro o corredor – e tentava usurpar da sorte uma poltrona vazia no corredor, logo descobri que isso seria inútil, pois o vôo estava lotado. Sai procurando a tal da poltrona; 24B era ela. Ao longe avistei a garota "exaltada" do telefone que eu tinha visto minutos antes. Não é que fui recebido com sorrisos, e acredite, a minha poltrona era a do meio, ao lado dela. Hoje, definitivamente é meu dia. Arrumei minhas coisinhas no bagageiro e fui sentar. Como não deixo nada pra depois, comentei que tinha visto ela ao telefone no portão de embarque e falei que ela parecia estar exaltada, alegre. Ela disse estar exultante por ir passar uma temporada no Brasil, pois seus pais são brasileiros, havia nascido lá, depois morado no Brasil, mas havia tempos morava nos EUA novamente; mas ela arranhava o português direitinho. Mas estranhamente preferia o inglês.

"24B, caramba! 24 é o número da minha poltrona; será que ela é ele?..." Usava uma daquelas calças e blusa tipo "bata indiana", tudo bem folgado e, pela textura da blusa, percebi que não usava os benditos soutiens. O dia hoje nem mentira é, e sim, brincadeira com a tesão alheia.

O formato "pêra" ficou nítido. De repente abaixou-se para pegar alguma coisa na bolsa aos seus pés e o mundo abriu-se em luz. De mentira, sim, era aquela visão! Em menos de uma hora! Desta vez a luz de leitura estava acesa, focando um livro inexistente com suas páginas abertas, as duas páginas escancaradas, iluminadas. Parecia a continuação... Era a continuação; aparentemente não houve separação de peças, apenas ocorreu um lapso de tempo insignificante, como que para os atores trocarem de roupas e cenário. Já nem lembrava do rosto na cena anterior, então deveria ser o mesmo. Assim a cena se repetiu por algumas horas, pois conversamos bastante e, ela, impetuosa, a cada instante "deixava" eu apreciar aquela brancura com duas pétalas róseas. Já me alcançava o priapismo, apesar do meu ser de desejo mesmo (aprenda mais sobre priapismo).

Enfrentar quinze horas contínuas de vôo não é uma coisa muito agradável e dormir é o melhor remédio. Ela começou a passar um creme nas pernas, arregaçando as pernas das calças até as coxas; fácil essas calças folgadas. Pela musculatura e meus olhos grandes perguntei se fazia alguma atividade física; "corro algumas milhas por semana" foi o que ouvi, pudera. Atiçou-me mais, aquelas pernas branquelas (agora começo a fazer desdém!) e a mente saiu em desvairada correria pelo infinito, como a procurar materializar o pensamento. "Talvez no banheiro; digo para a aeromoça que ela está passando mal, quer vomitar, sei lá!... Caramba 'uma' no banheiro do avião! Meus netos vão saber disto!".

De vez em quando minha perna "escorregava" para as dela sorrateiramente, roçava um pouco e voltava. Ela dava umas risadas meio desdenhosas, mas não retirava a perna; nessas alturas (literalmente) voltei à minha poltroninha. Ela desceu em São Paulo.

1 Morfeu, um dos filhos de Hipnos; percorre o mundo e toca os mortais com uma papoula para adormecê-los; em seguida, assume formas humanas e aparece para quem dorme; os sonhos são essas aparições do deus.

2 Merda mesmo!

3 The Rideau Canal Waterway is a boater's paradise, attracting pleasure boats from across North America to travel its 202 kilometre (125 mile) length. The Rideau Waterway, a Canadian National Historic Site and a designated Canadian Heritage River, consists of a series of beautiful lakes and rivers connected by canals. It stretches from Kingston, at the foot of Lake Ontario, to Ottawa, Canada's capital. Maintained by Canada's Parks service it is arguably the most scenic waterway in North America. Whether you visit by boat, car, or bicycle, the Rideau has something for you.

4 Personagem de O Morro dos Ventos Uivantes, de Emilie Brontë.

5 Salah-al Din ("honrando la Fe"), nacido en Tekrit en el seno de una familia kurda que emigró a Irak, prestó sus servicios al sultán de Siria, Nureddin, y comandó una misión militar de defensa de Egipto frente al ataque de los francos y con el objetivo de eliminar del poder a la dinastía de los fatimíes, considerada herética. Tras tomar Egipto en 1169, obtuvo el cargo de visir del sultán fatimí, a quien sucedió en 1171. A la muerte de Nureddin en 1174 tomó Damasco, Emesa y Hamah, y un año más tarde conquistó Baalbek y los territorios cercanos a Alepo, concediéndole el califa el título de sultán de Egipto, Nubia, Cirenáica, Yemen, Palestina y territorios de Siria. Conquistado definitivamente Alepo en 1183, y obtenido el vasallaje del príncipe de Mosul en 1186, lo que le procuraba el contro sobre Siria, emprendió la conquista del Reino latino de Jerusalén. En 1187 venció en la batalla de Hattin, lo que le permitió invadir todo el Reino menos los sitios de Antioquía, Trípoli y Tiro. Jerusalén cayó en 1187, lo que provocó la reacción de las potencias occidentales y el inicio de la Tercera Cruzada. Derrotado en Arsuf, Jaffa y Cesarea por los cristianos liderados por Ricardo Corazón de León, ambos contendientes firmaron un tratado de paz en 1192 que aseguraba la existencia del Reino latino de Jerusalén, si bien circunscrito a una franja costera y un estrecho corredor hasta la ciudad, ésta en poder de los musulmanes.